quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

DESBRAVANDO OS ARQUIVOS DESTE BLOGUE

 


(Devo confessar que não sou muito propenso a rever-me em escritos antigos. Aprecio muito o gozo do momento em que escrevo e, por isso, entre contemplar o que está escrito e avançar para outra opto regularmente por esta última. Mas como é óbvio, em doze anos de escrita neste blogue, existe sempre a tentação de revisitar alguma coisa que tenha escrito. Neste caso, essa possibilidade surgiu não porque consultasse organizadamente o arquivo do blogue mas tão só porque um artigo em fotocópia perdida numa das minhas secretárias, a do escritório em Matosinhos, me saltou aos olhos e como era atual.  Tratava-se do registo que a revista PROSPECT fazia em agosto de 2022 de uma lição, a MacTaggart Lecture, proferida pela jornalista britânica Emily Maitlis sobre as relações entre jornalismo e populismo. A lição começa com o relato de Maitlis da noite eleitoral americana que conduziu à vitória de Trump contra Hillary Clinton, a fatal noite de 7 de novembro de 2016. O tema continua a revestir-se de uma atualidade incómoda, não só porque o tema da lição se reforçou como, tragicamente, paira de novo o mundo a hipótese da noite de 7 de novembro de 2016 se repetir.)

Relendo o artigo, apercebo-me que as palavras e os argumentos de Maitlis são de uma cruel mas rigorosa apreciação do tema, que ela encara como justificando a imperiosa necessidade de parar com a normalização do absurdo.

Há uma dimensão do pensamento de Maitlis que não é original, porque vai ao encontro do que muitos pensam. As redes sociais constituem um ecossistema altamente favorável à linguagem e ao argumentário do populismo, concedendo prioridade e quase exclusivo ao emocional e ao simplismo, cavando a sepultura do rigor e da investigação jornalística. Por isso, se entende que os media, entendidos nesta perspetiva de ampliar o emocional, constituem um instrumento precioso do acesso do populismo ao poder. Mas Maitlis escapa à vulgata, discutindo algo de mais incómodo e de muito difícil aceitação por parte do próprio populismo: como é que o populismo em crescendo afeta o trabalho do próprio jornalismo?

De facto, a estratégia seguida pelo mundo do populismo no sentido de desacreditar o jornalismo responsável acaba por gerar na classe comportamentos de autocensura e de enviesamentos para demonstrar que o que publicam é equilibrado e imparcial. Em torno desta ideia, Maitlis estrutura reflexões certeiras sobre o populismo, mostrando que este “ismo” não tem a densidade ideológica de outros “ismos” ou a baseá-lo uma crença ou política. A visão que o acompanha é simplesmente a de um confronto entre o que são, supostamente, as pessoas puras e as elites corruptas, no quadro do que o jornalista Moisés Naím classifica como sendo uma estratégia para a tomada do poder, tout court, separando os jornalistas do público em geral, como se estes não integrassem esse público e estivessem rendidos à corrupção das elites.

Não sei se este exercício de autocrítica teria ampla disseminação entre os jornalistas de hoje, dos precários aos mais estáveis ou se, pelo contrário, a já referida e induzida autocensura os impedirá de se submeter um exercício reflexivo de tal natureza.

Maitlis, com experiência de jornalismo em Londres e em Washington, obviamente que utiliza como evidência materiais e factos que ela presenciou ou em que participou em ambos os países. Mas alargando perspetivas e o campo de evidências e tendo em conta que o populismo instalado está longe de se circunscrever a esses dois centros de poder, a MacTaggart Lecture de Emily Maitlis tem uma vastíssima aplicação, devendo a sua leitura fazer parte de qualquer refrescamento de ideias, mais ou menos reflexivo. E não só para jornalistas. Para políticos também. E para gente como eu que se interessa por compreender o mundo que o rodeia.

 

 

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