domingo, 4 de fevereiro de 2024

A FRAGILIDADE DOS ALICERCES EUROPEUS

 


(Com início em França, cada vez mais chauvinista e sensível aos apelos do nacionalismo, mas estendendo-se depois à Alemanha, Bélgica e Roménia, a agricultura dos poderosos manifestou-se com estrondo e bloqueou a mobilidade nesses países, com ameaças mais duras de bloqueios mais vastos. Não foi fácil desde logo compreender o racional dos protestos e bloqueios, com o símbolo dos tratores a imperar como principal elemento de notoriedade no espaço público. Muita gente pensou, confesso que eu também, que a nuvem da integração potencial da Ucrânia na União estaria na origem remota dos protestos. Compreendeu-se, depois, que as chamadas medidas ambientais ou ecológicas da Política Agrícola Comum e impostas pelo Pacto Ecológico Europeu focado na descarbonização e na transição climática estavam no centro imediato das reivindicações e da ira dos agricultores. Cá pelo país, com o atraso do costume, espantou-me a reação inicial da CAP, que não hesitou em considerar que não participaria em manifestações que visassem a destruição do mercado interno europeu, escudando-se no acordo, aparentemente assinado sem a participação da outra Confederação agrícola, a CNA, com a Ministra da Agricultura, o qual aponta para propostas de revisão do PEPAC – Plano Estratégico para a Política Agrícola Comum para Portugal, que deverá ser presente a Bruxelas para validação. Já posteriormente à declaração da CAP, surgiram os primeiros bloqueios dos agricultores portugueses, mais no centro sul e sul do que noutros territórios, cuja dificuldade de considerar inorgânicos é manifesta, considerando a argúcia do Chega em cavalgar tudo que é insatisfação na base.)

Recuperando a origem francesa do movimento de protesto dos agricultores, rapidamente intuí que o risco do Rassemblement National da Madame Le Pen estar a cavalgar o processo era elevadíssimo, já que a questão agrícola (apesar da descarada proteção que a PAC concede à agricultura francesa) é das tais em que o combustível do nacionalismo económico é um convite natural ao Lepenismo. Depois, foi sendo possível começar a compreender que a agricultura mais industrializada estava bem mais representada nos protestos do que a pequena agricultura. E começou a ficar claro que o principal motivo de insatisfação, não é tanto o sentido de desprezo nacional que o mundo rural atribui às elites urbanas, mas antes a determinação em diferir o mais possível no tempo, com as maiores contrapartidas de ajustamento possíveis, a aplicação e extensão das medidas ambientais e ecológicas para a agricultura.

E esse é o meu ponto. O peso que a PAC representa no orçamento europeu constitui já, em meu entender, um indicador óbvio da fragilidade dos alicerces europeus. Esse peso representa apenas a importância do que foi necessário garantir aos países do centro da Europa, França e Alemanha. A questão tem sido sistematicamente reproduzida e apesar das sucessivas reformas e da retórica das medidas ambientais e do desenvolvimento rural, a verdade é que globalmente a situação tem permanecido. O poder de contraponto dos agricultores franceses e alemães é imenso e ele confunde-se em grande medida com os interesses proeminentes da agricultura mais industrializada.

A fragilidade de tais alicerces torna-se ainda mais evidente quando introduzimos na questão a transição climática e se pretende que a agricultura europeia vire uma agricultura mais sustentável e ecológica.

Como tenho vindo sistematicamente a salientar em posts sucessivos, a ideia de transição energética e climática não tem passado de conversa da treta, sobretudo porque ela não tem sido acompanhada de um sistema de compensações fiscais e de apoio ao rendimento que mitiguem os custos elevados para muita da agricultura visada. Ou seja, de transição o processo não tem praticamente nada. A ideia de transição é precisamente colocada no sentido de ir apoiando a lenta mas sustentável mudança dos processos agrícolas.

Quando se analisam as Vozes dos tais movimentos inorgânicos em Portugal percebe-se que não é propriamente a mesma questão das medidas ambientais e ecológicas que estará no cerne do descontentamento agrícola que agora se manifesta. Há um conjunto de outras questões que surgem em meu entender com mais força no racional dos bloqueios, entretanto desativados. Por exemplo, os atrasos inexplicáveis de pagamento de subsídios e a sempre referida questão do esmagamento de preços por parte da grande distribuição que esmaga os preços na produção, assobia para o lado e alinha depois em comunicação enganosa para demonstrar o seu entusiasmo e empenho na transição energética e climática.

Por isso, em meu entender, quando personagens como Luís Pedro Nunes avançam no Eixo do Mal com a tese de que é o velho mundo rural que se manifesta, cavalgado pelo Chega, contra a indiferença das elites urbanas, tendo a dizer que não percebem nada do assunto.

Mas o meu ponto central é a denúncia do discurso da treta em matéria de convicção europeia com a transição climática e energética. Essa convicção entra em ruína total logo que a primeira ameaça de protesto apareça no terreno. E assim veremos nos próximos tempos a Comissão Europeia a rever-se no contrário de opções anteriormente assumidas. Afinal, as regras ambientais têm de ser diferidas no tempo. Desde que os líderes nacionais e europeus, dos mais novinhos como o Primeiro-Ministro francês aos mais experientes e sabidolas, pressintam que por detrás das manifestações e bloqueios possa estar a extrema-direita nacionalista não haverá reivindicação que não seja aceite. O problema de enfrentar os centros de opinião e deputados europeus ecologistas e apostados na descarbonização da agricultura fica para outras núpcias, descartam-se e esquecem-se planos e declarações. E assim evoluiremos nos próximos tempos. E apetece mesmo perguntar para que precisa a extrema-direita de tomar o poder, basta atuar-lhe por entidades e processos interpostos.

Quanto ao nosso Ministério da Agricultura, e não esqueçamos que a Ministra é um trágico erro de casting político, parece que só em gestão é que recuperou o seu poder negocial e a capacidade de oferecer compensações que se vejam a agricultores. Aconselho, por isso, o candidato do PS a não se vangloriar muito com a maneira como os governos PS trataram as questões agrícolas. E, já agora, pode começar a pensar em alguém que não se identifique apenas com a agricultura do centro-sul e sul do país. Já seria tempo de o conseguir.

 

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