terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

A LIBERDADE DE ERRAR

 

(Branko Milanovic, além de se tratar de um dos maiores especialistas da investigação empírica da desigualdade, como o temos divulgado abundantemente neste blogue, é um profundo conhecedor das democracias avançadas em confronto com o seu conhecimento das economias de leste. Originário da Sérvia e por essa via evidenciando grande familiaridade com as questões do marxismo e da transição das economias do leste europeu dada a sua formação universitária naquele país, a sua análise crítica das democracias liberais acaba por representar sempre uma abordagem fora da caixa. Na realidade, retirando algumas exceções, talvez com Bradford DeLong à frente desse universo, o cruzamento com o marxismo deixou de ser tema relevante para a investigação económica, com manifesta perda e prejuízo para a compreensão da complexa transição em que a grande generalidade das economias em desenvolvimento se encontram. Essas economias, estando longe de apresentar as suas estruturas democráticas consolidadas, a falar de consolidação seria mais de estruturas autoritárias, continuam a representar um enorme desafio de análise, ao qual continuamos a responder imperfeitamente. Numa das suas últimas crónicas centradas na sobrevivência das democracias liberais, Milanovic utiliza a expressão “a liberdade de cometer erros”. Interrogando-se sobre o que em seu entender distingue as democracias das ditaduras, Milanovic chega a algumas conclusões que vou utilizar como elemento central deste post, numa linha de continuidade de preocupações que vai caracterizando a minha avaliação do estado atual da defesa dos valores democráticos. Não é difícil perceber que o tema vai somando posts, o que constitui um indicador objetivo dessas minhas preocupações.)

A resposta de Milanovic à interrogação anteriormente colocada não deixa de ser cruamente surpreendente:

“(…) O que distingue essencialmente a democracia das ditaduras é, na primeira, a liberdade de ler e ouvir o que eu quiser e dizer o que queira. E penso que é tudo. Não acredito que a democracia conduza a um maior crescimento, a menos corrupção ou a menos desigualdade. Não existe evidência para qualquer uma dessas coisas. Em palavras talvez mais fortes, creio que a democracia não tem qualquer efeito sobre qualquer fenómeno social real, mas possibilita que as pessoas, num nível estritamente pessoal, se sintam melhores acedendo a informação mais diversificada e expressando as suas opções. (Note-se que esta Liberdade se aplica apenas à esfera política, não ao lugar de cada um no processo de trabalho o qual nas democracias ocidentais é dirigido ditatorialmente)”.

A questão essencial da liberdade de escolha e, consequentemente, a liberdade de errar ou do direito ao erro, atravessa hoje tempos conturbados. Os motivos são conhecidos. Com predomínio particular nos jovens, mas não só, a dependência da informação que suporta a opinião de qualquer uma das redes sociais e a infestação dessas redes de correntes de informação falsa ou indutora de climas de ódio e frustração coloca a liberdade de errar perto de um abismo. De facto, o critério da diversidade de informação para uma boa escolha parece fechado para obras ou desaparecimento definitivo. O princípio básico da escolha em democracia parece assim abalado. Mas acho que Milanovic tem razão quando sustenta que pretender substituir essa profusão de informação falsa ou de simples manipulação por princípios de pensamento único clarificador e de reposição da verdade que se pensa possuir é absolutamente contraditório com o princípio central da democracia, a liberdade de escolha, mesmo errando. Creio que tem sido José Pacheco Pereira no Princípio da Incerteza a referir que a sociedade portuguesa está profundamente reativa à diversidade de pensamento, insurgindo-se contra tudo que possa representar uma posição mais heterodoxa. É um mau sinal e revela tiques de complacência com a uniformidade, antítese do que é a liberdade de escolha e de expressão em democracia.

O problema torna-se ainda mais complexo quando a comunicação social que, no universo da esfera pública ou privada, deveria precisamente ser a garantia da diversidade da informação e de perspetivas, está ela também em grande medida, sobretudo os seus profissionais mais vulneráveis, refém das redes sociais e das bolhas mediáticas que as atravessam e capturam.

Estas questões adquirem um impulso mais significativo em tempos eleitorais de grande indeterminação. As eleições em democracia constituem um exemplo concreto da tal liberdade de escolha que define as democracias. Na prática, por convicção já consolidada ou por opção formada no período que antecede o ato eleitoral, escolhemos os que nos irão representar na produção legislativa e na governação. A liberdade de errar inclui as próprias escolhas, boas ou más, de quem pretendemos que nos represente. Hoje, dada a maior fragmentação e polarização social e política, fala-se muito de ingovernabilidade. Por vezes, temos a sensação que essa ingovernabilidade provém de outros fatores que não do próprio voto popular.

Apliquemos este critério ao debate de ontem. Ficou ontem claro, a fazer fé na afirmação de Pedro Nuno Santos, de que se o PS não ganhar as eleições ou, nesse caso, se não conseguir formar uma maioria de esquerda com o Bloco, PCP e Livre, viabilizará um governo da AD acaso esta vença naquelas condições as eleições. Já no que respeita a Luís Montenegro, tão claro noutras opções como a da descida de impostos como passe de mágica para o crescimento económico, não foi capaz de clarificar se em condições simétricas às enunciadas por PNS viabilizará ou não um governo do PS. Se o PSD e a AD não alterarem até 10 de março a sua posição, a questão da ingovernabilidade não pode estar mais clara para os eleitores. Um voto no PS não significará nunca ingovernabilidade, o mesmo não podendo ser dito quanto ao voto na AD.

Por estas razões, as teses da inocência dos eleitores coitadinhos, enganados pelas bolhas mediáticas, fazem-me rir, sinceramente. Por isso, acredito em discursos políticos que responsabilizem os eleitores tornando-os conscientes das escolhas que fazem. Fujo, pelo contrário, a sete pés dos discursos que os infantilizam como alguns pais destes tempos de hoje que desresponsabilizam desde muito cedo os seus filhos. Este princípio aplica-se obviamente às estranhas criaturas que votam no Chega. E não me venham por favor com a tese de que temos de realizar investigação aprofundada sobre o que leva alguma gente e tão imperfeitas criaturas a votar antissistema e anti-liberdade de escolha.

 

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