(Jornal Público)
(O Carnaval irrita-me, não tenho stock de alegria para tanto, a neve não me atrai como turista ou praticante, talvez porque não tenha tido a iniciação adequada em idade própria, por isso este longo fim de semana é um pouco cansativo e a criatividade para o blogue também não está nos melhores dias. Tenho assim de me socorrer dos estímulos sensoriais que a leitura dos jornais por estes dias me tem proporcionado e nelas encontrar um tema, curto que seja, para assinalar uma reflexão que tenha feito a diferença neste mar de sensações marcado pela agitação política e eleitoral, que antecipa, intuo eu, uma alternância democrática ou os desafios da ingovernabilidade. Seguindo esse critério, a escolha recaiu na crónica de Miguel Sousa Tavares no Expresso, uma escrita corajosa para os tempos de hoje e assinalo-a por isso, pois ela, na coragem crua da sua exposição, traz-nos uma excelente reflexão sobre os tempos de deriva em que a sociedade portuguesa está hoje mergulhada. Essa deriva resulta em grande medida, em meu entender, do tempo longo, demasiado longo para os mais impacientes e para as gerações jovens mais qualificadas, da mudança estrutural da economia portuguesa. Lenta nos seus efeitos de disseminação, a mudança estrutural tardia e envergonhada bloqueia o nível de desenvolvimento socioeconómico suscetível de corresponder aos anseios naturais de uma sociedade que se compara cada vez mais com os seus parceiros europeus.)
A escrita de Miguel Sousa Tavares (MST) é daquela a que não se fica indiferente, alinhemos ou não as nossas convicções com as do cronista. Agrada-me a sua independência, a sua capacidade de se manter contra a corrente, a sua propensão para irritar o pensamento dominante e acomodado, mesmo que descontando, aqui e ali, alguns tiques de elitismo bem, mas que rapidamente se apagam com o caráter corrosivo de algumas das suas posições.
A terceira página do Expresso está assim bem entregue, justifica a leitura do jornal e quase encontro encontramos nas crónicas elementos para uma fértil reflexão futura.
O tema da crónica desta semana é incómodo, as manifestações controversas dos polícias, e leva a ideia de contra a corrente a níveis superiores. Isso acontece sobretudo porque se instalou na sociedade portuguesa e comunicacional uma estranha compreensão pela dita “justa luta” dos políticas e pelo argumento de injustiça face ao prémio especial atribuído aos quadros da Polícia Judiciária. MST tem toda a razão do mundo quando refere que não assistiu a qualquer discussão aprofundada sobre a ideia da pretensa equidade necessária de prémios dessa natureza entre a Polícia Judiciária e as restantes forças de segurança. É um facto que a decisão do governo de António Costa, porque isolada e desintegrada de uma perspetiva mais geral sobre o estado das forças de segurança, constitui uma ponta solta, como o já referi em crónicas anteriores, difícil de colmatar, sobretudo porque não revelou qualquer capacidade de antecipação política dos seus efeitos no contexto fortemente instável da política nacional.
Mas assistir ao que temos assistido da parte das forças de segurança que respondem perante a defesa da democracia e das suas principais instituições é de uma gravidade tal que apaga a meu ver qualquer razão que os profissionais tenham no tema em causa. A perigosa fragmentação das associações de representação de interesses dos profissionais da polícia e o aparecimento de movimentos inorgânicos que decididamente essas associações não controlam de todo são um campo fértil para serem infiltradas por gente interessada no caos e sabemos que temos uma força política em crescendo de peso eleitoral que se guia pelos mesmos critérios de acesso ao poder. Espanta também (espanta mesmo?) ver elementos da classe médica envolvidos em baixas que têm todo o ar de fraudulentas, acrescentando ao processo uma vulgarização de procedimentos que aumenta as desconfianças quanto à coerência do movimento reivindicativo.
A crónica de MST acaba com uma referência que lhe é cara e que constitui um tema bastante incómodo para uma certa esquerda e que consiste nas pretensas desigualdades de proteção entre trabalhadores do setor privado e algumas mordomias de proteção dos trabalhadores do setor público. Se podemos admitir que a relação entre segurança de emprego e nível salarial nem sempre cai para o lado dos trabalhadores do setor público, existindo casos em que a solidez empresarial privada e os maiores salários tornam a referida relação favorável a alguns grupos de trabalhadores do setor privado, MST tem razão quando aponta aos trabalhadores do setor público e às suas reivindicações uma maior notoriedade mediática. Por isso, a crónica não resiste na sua parte final a um tom profético-catastrofista que seguramente não é o melhor do (pensamento de MST: “(…) Assistem, em silêncio, à desagregação da República e a reivindicações que, comparando com a sua situação, sentem muitas vezes como injustas ou como representando uma conta que lhes caberá paga sem proveito próprio algum. Há quem lhes chame classe média, há quem lhes chame contribuintes, há quem lhes chame abstencionistas. Talvez um dia eles consigam também sair à rua, só para que se saiba que existe.”
Há aqui obviamente exageros e categorias sociais que não as mais corretamente definidas. Mas existe aqui uma matéria a que devemos conceder toda a atenção – a perda de coesão entre grupos sociais. Esse é um tema de resvalamento possível para situações de representações inorgânicas que são regra geral profundamente nefastas para a democracia.
Muito provavelmente não ouviremos das forças políticas que se apresentarão a votos no 10 de março uma palavra que seja sobre o tema.
Aí é que está o Problema.
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