quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

FOI BOM, MAS O NIGHT COUNTRY CHEGOU AO FIM

 


(Tenho de confessar que sinto algum orgulho com a antecipação que o meu post Desanuviar (1) trouxe para este espaço da série da HBO Night Country, apresentada como quarta temporada do True Detective. O facto da série ter sido apresentada em simultâneo nos EUA e na Europa valeu-lhe uma audiência média por episódio de cerca de 12,7 milhões de espectadores, como bem o assinala a jornalista Joana Amaral Cardoso do Público, um dos raros jornais a dar conta do acontecimento, destacando-se claramente ao longo destas seis semanas na programação da HBO. Esta semana o encanto terminou com a visualização do sexto e último episódio em que diferentes “histórias” foram confrontadas sobre a real explicação do fenómeno dos investigadores da estação ártica de Tsalal terem sido encontrados mortos na neve mais profunda. A atração pelo mistério das coisas não explicadas ou inexplicáveis que se mistura com a possibilidade de várias narrativas serem possíveis sobre os acontecimentos atravessa todo o último episódio e de certo modo toda a série, transformando-a a meu ver numa referência icónica do entretenimento televisivo em streaming (link aqui e aqui).)

O último episódio de Night Country reconstitui o mistério da atividade da estação ártica de investigação de Tsalal, cujos investigadores haveriam tragicamente de desaparecer assassinados. Graças à perseverança de Liz Travers (Jodie Foster) e Evangeline Navarro (Karel Reis) na caça ao investigador Clark, o único investigador que escapou ao assassínio, percebe-se que a equipa de investigação fazia jogo duplo. Seduzidos pela possibilidade de descoberta de um ADN que salvaria o mundo na expressão de Clark, a equipa ignorava o significativo impacto poluidor da mina (que os financiava). A deterioração do solo permanentemente congelado (permafrost) que penalizava fortemente a saúde da população nativa facilitava a investigação. O dilema que atormentava a equipa de investigação, visto na perspetiva do encurralado Clark, pode ser interpretado como uma metáfora do estado da arte da investigação científica atual. Sempre pressionada por questões de financiamento, a procura dessas fontes coloca por vezes a investigação científica perante dilemas éticos de grande expressividade que o ambiente do Ártico profundo, de que a imaginária pequena cidade de Ennis no Alasca é tão só uma simples expressão.

A reconstituição em flash back do processo permite compreender que foi a também assassinada parteira indígena Annie Kowtok, alertada pelas mulheres da sua comunidade que faziam a limpeza da estação, que descobriu a trama e que num auge de raiva incontida destruiu parte dos equipamentos e da investigação já realizada. Essa destruição valeu-lhe o assassínio selvagem perpetrado por toda a equipa de investigação, o qual gera uma reação violenta da comunidade nativa que, vingando o assassínio do seu membro mais representativo e os graves danos provocados pela poluição da mina consentidos pela equipa de investigação, remete a equipa de investigação para um simulacro de suicídio coletivo na neve que não é mais do que um assassínio coletivo.

É curioso perceber que, em tempos diferentes, as duas polícias e as nativas descobrem a trama a partir de origens também diferentes: Travers e Navarro descobrem-na por acaso a partir de uma gruta no gelo localizando a ligação entre a estação de investigação e o subterrâneo gelado; as nativas responsáveis pela limpeza da estação descobrem-na a partir da própria estação percebendo que a água se escoava por um sítio desconhecido que não era senão a galeria de acesso ao subsolo gelado.

O espectador é assim confrontado com duas narrativas, com duas histórias na expressão da líder da comunidade nativa, a da dupla vingança perpetrada pela comunidade nativa e a de um fenómeno atmosférico extremo que terá apanhado desprevenidos os investigadores num momento de distensão. É impossível não pensar que a vingança das mulheres nativas não tenha aqui um peso metafórico indiscutível, no contexto da repressão sexista a que estavam submetidas. Não será por acaso que são duas mulheres políticas a desvendar a trama e que seja um grupo de mulheres a perpetrar a vingança.

Mas o confronto entre as duas narrativas deixa no limbo do mistério a morte do polícia corrupto, conluiado com a empresa mineira, pai de Prior o ajudante de Travers que o mata em situação in extremis de defesa, e o próprio desaparecimento da agente Navarro. O polícia corrupto desaparece no gelo profundo graças à competência de Rose, uma das personagens mais enigmáticas da série que auxilia o filho Prior a fazer desaparecer o cadáver do seu pai. Claro que o verdadeiro e mais profundo mistério é a atração de Navarro pelo abismo do além, a tentação do lado de lá. Não se fica a saber se Navarro segue o caminho da sua irmã perdendo-se no gelo ou se, pelo contrário, desaparece para outras paragens, fugindo à influência de Ennis.

A entrevista final de Travers realizada por dois responsáveis da política estadual e nacional encerra a narrativa sobre o que aconteceu, confirmando que na Ennis profunda e longínqua os fantasmas e a vida convivem quase espontaneamente.

Já na parte final do episódio, percebe-se que o investigador Raymond Clark, antes de endereçar a alma ao diabo, terá sido forçado por Navarro a gravar um vídeo em que declara a fraude dos indicadores de poluição, pondo a nu a responsabilidade da empresa mineira na degradação da qualidade e de condições de morte da população nativa.

Entretanto, o período de noite profunda acaba, o sol desponta e Liz Travers, acompanhada da filha, goza finalmente um tempo de lazer efetivo.

Foi bom, mas acabou no tempo real. Podemos rever os episódios em streaming como é óbvio. Mas não é a mesma coisa de, em simultâneo com toda a Europa e os EUA, seguir a visualização regular do modo como os episódios foram sendo lançados para o público.

 

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