sábado, 24 de fevereiro de 2024

MAS AFINAL EM QUE FICAMOS: ESTARÁ PUTIN A PERDER A GUERRA?

 

(Dois anos decorridos sobre a brutal invasão russa da Ucrânia e dada a persistência da guerra é natural que se sucedam, à margem das cerimónias oficiais e dos pronunciamentos políticos proferidos em Kiev ou a partir do exterior, inúmeros e variados diagnósticos sobre o estado das coisas no plano político e militar. Entre os comentadores nacionais que nos invadem os écrans das nossas televisões, os majores-generais e outras personalidades do tipo parecem ter acordado de um limbo de irrelevância para emergir orgulhosos do seu pensamento estratégico, mas não só a nível nacional, também com forte presença na mais reputada imprensa nacional, tenho ficado algum surpreso com uma avaliação que corre por esses meios. Estratégica e politicamente, Putin já terá perdido a guerra na medida em que nenhum dos seus objetivos inicialmente definidos foi atingido. Estou seguro que não será propriamente com avaliações estratégicas deste calibre que poderemos compensar o sacrifício e o desespero dos Ucranianos que sentem no seu dia a dia a inclemência do conflito. É certo que pelos últimos números conhecidos mais de 80% dos Ucranianos acredita ainda numa vitória face à invasão russa, percentagem que contrasta dramaticamente com a queda da percentagem da confiança dos Europeus nessa mesma vitória. Além disso, talvez a referida avaliação estratégica não seja realizada com as lentes mais adequadas, observando-se um caso típico de distorção da realidade.)

Para mostrar que esta deriva interpretativa não é comum apenas aos nossos painéis de comentadores de estratégia militar, socorro-me de um artigo de opinião publicado na sexta feira passada pelo New York Times internacional, com honra de editorial de primeira página, que não hesita em transportar para título do artigo a seguinte opinião: “Porque é que Putin já perdeu esta guerra”. O cronista Rajan Menon é diretor de um programa de estratégia no âmbito das prioridades da Defesa americana.

O autor não se coíbe de citar o grande mestre da estratégia militar Carl von. Clausewitz, sempre citado em qualquer manual de estratégia, não apenas militar, quando ele recorda que a guerra não visa em última instância matar pessoas e destruir coisas. Ela visa algo de mais amplo que tem a ver com a concretização de objetivos políticos específicos.

Ora é esta a base das afirmações que tenho ouvido e lido sobre a derrota já manifesta de Putin. Por outras palavras, o autocrata russo não concretizou nenhum dos objetivos políticos que se propôs inicialmente atingir. Principalmente, o grande objetivo de manter a Ucrânia na área de influência política, económica e cultural russa está manifestamente fora do controlo de Putin. A população ucraniana que manterá laços culturais e familiares com alguma ascendência russa estará a diminuir particularmente entre os mais jovens. A agressão russa terá apenas confirmado a mudança cultural já em curso que os acontecimentos de 2014 haviam já sugerido com toda a intensidade. Essa mudança vai ao ponto de ir além de uma simples questão linguística: há quem comunique na Ucrânia em russo e que não deixa de se sentir por isso cidadão ucraniano. Isto acontece sobretudo em territórios do leste e sul da Ucrânia, onde a questão linguística sempre foi considerada por Putin um fator de resistência à ideia de uma Ucrânia ocidentalizada.

Um outro objetivo falhado é o de impedir o alargamento da influência da NATO a leste e a ocidente. A Ucrânia caminha para a adesão o que transformará perigosamente a geopolítica do conflito e a Finlândia e a Suécia ultrapassaram, compreensivelmente, os seus receios que justificavam a neutralidade. Após a invasão, o contexto é claramente desfavorável a Putin.

Mas a pergunta que faço é se este referencial estratégico é suficientemente demolidor para justificar a afirmação – Putin já perdeu a guerra? A questão estruturante de Clausewitz não tem o mesmo alcance nas sociedades livres e democráticas ocidentais e num regime ditatorial e autoritário como o é o da Rússia. O facto dos grandes objetivos estratégicos não serem atingidos não significa enfraquecimento do poder incumbente, a não ser que essa falha de objetivos tenha consequências na relação de forças que sustenta o regime e o poder de Putin. Ora, com a informação disponível, pode concluir-se que essa insuficiência de objetivos não produziu até agora qualquer alteração de relação de forças internas. Por isso, afirmações desta natureza são enganosas e, pior do que isso, não acrescentam nada à resistência ucraniana. Os padrões de racionalidade de um ditador não são similares aos de um governo democrático que responde perante eleitorados. Consequentemente, as lentes da análise estratégica não podem ser as mesmas.

 

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