(As narrativas da geopolítica sempre me interessaram não por motivos de investigação direta sobre o tema, mas pelos pontos de contacto que ele mantém com a matéria dos rumos da globalização. O curso de Globalização e Desenvolvimento Económico que me estava atribuído no mestrado de Economia e Gestão da Inovação na FEP marca indelevelmente os meus derradeiros tempos de investigação e docência na FEP antes da aposentação. Mesmo sem aulas, continuei a interessar-me pela matéria, com alguma mágoa de que não tenha encontrado seguidor para a sua continuidade com as novas gerações de estudantes, mas é a vida. Desde 2010, os tempos da geopolítica alteraram-se brutalmente e como seria de prever, de facto sempre assim aconteceu, a engenharia e a inovação da terminologia avançam sempre mais depressa do que a real compreensão do que está efetivamente a acontecer. No que diz respeito à geoeconomia, rapidamente termos como desglobalização, desfragmentação, “reshoring”, friendly-shoring”, alguns dos quais já referenciados neste blogue, e outros que tais ocuparam a cena, de novo com mais inovação nas palavras do que profundidade no conhecimento. Mas no plano da geopolítica, parece haver uma maior inibição de criatividade terminológica. O termo “nova ordem económica e política internacional” está gasto, já que ao longo da minha carreira universitária não chegam os dedos de uma mão para as diferentes “novas ordens” que foram sendo conceptualizadas. É sobre esta aparente indefinição que o post de hoje se ocupa.)
Uma das narrativas mais insistentes sobre geopolítica do mundo de hoje está relacionado com o pretenso declínio do modelo americano e da sua capacidade de inspirar o mundo. Esta tese tem sido música celestial para a estratégia de Putin, que nela encontra fundamentos para a sua cruzada objetivamente conservadora dos valores da sua Rússia profunda.
Muita gente ainda se recorda da obra de Oswald Spengler, The Decline of the West, publicada em dois volumes em 1918 e 1922 e depois em versão unificada em 1923, que inspirou no seu tempo dúvidas de diferente natureza sobre a capacidade de afirmação americana e que perdurou no tempo. Dúvidas que a capacidade americana de envolvimento na Segunda Guerra Mundial com um projeto notável de organização e de mobilização de recursos dissipou em grande medida. Há quem refira que Kissinger foi inspirado pela obra de Spengler para moldar a sua própria diplomacia.
Os argumentos mais recentes sobre as perspetivas do declínio americano têm origens diversas. Eles resultam, em primeiro lugar, de decisões questionadas pelo mundo indefeso sobre a retirada americana de algumas paragens, como foi o exemplo do Afeganistão. Tratava-se afinal de uma espécie de autovalidação do declínio, abandonando teatros de operações tão relevantes para os equilíbrios mundiais. Mas as principais razões para o tema do declínio americano recordar os tempos de Spengler derivam da enorme polarização e divisão que política e sociologicamente afeta os EUA e da emergência do contraponto económico e tecnológico que a China hoje representa, apesar dos problemas internos com que se debate (crash imobiliário generalizado e crise demográfica). A emergência do fantasma de Trump neste cenário é a ponta que liga os problemas internos à posição americana no mundo. Basta recordar as muito recentes afirmações de Trump sobre os pagamentos das contribuições à NATO para compreender essa estranha e perigosa ponte. Nuno Rogeiro no Leste-Oeste do passado domingo referiu piamente que as afirmações do tresloucado Trump poderiam ser de pura ironia, mas admitir que poderia incentivar a intervenção russa sobre os caloteiros da NATO parece-me que a ser ironia, é trágica e medonha.
Em contraponto às teses do declínio americano que, em meu entender, são uma forma velada de torcer o nariz à ordem internacional hegemonizada pelos EUA, houve sempre quem defendesse a eterna capacidade endógena dos EUA se renovarem e contrariarem as ameaças de declínio. O artigo de Samuel Huntington sobre a matéria (1988) é muito referenciado. A capacidade de renovação estaria na índole dos próprios americanos (modelos de imigração e de implantação segundo o princípio da fronteira) e na riqueza das instituições. Confesso que estou cada vez mais cético em relação a estes argumentos. O assalto ao Capitólio e a incapacidade de castigar os autores e instigadores de tal processo sugerem que o declínio pode estar a atravessar as próprias instituições, elas próprias reféns da profunda divisão em que a sociedade americana está mergulhada e capturada pelos interesses mais obscuros.
A criatividade das narrativas da geopolítica incide também sobre o contexto externo em que o putativo declínio americano deveria ser considerado. Noah Smith refere essencialmente duas novas designações, a de Guerra Fria 2 e a de “Novo Eixo”. As duas expressões acabam por estar relacionadas. A Guerra Fria 1 sabemos o que foi num mundo bipolar organizado pelo embate entre a hegemonia americana e a da União Soviética. É um facto que uma enorme quantidade de gente viveu na pele e no atrofiamento das suas ambições a consequência da União Soviética se afirmar como um contraponto à influência americana. Mas ainda assim o mundo era um universo relativamente previsível.
O que se passa hoje com a tal Guerra Fria 2 é a mais profunda e inquietante imprevisibilidade. É uma multipolaridade estranha e muitas vezes perigosamente inorgânica que se opõe à hegemonia americana e/ou que procura ocupar os vazios do afastamento americano. Smith refugia-se no facto de para ele a Guerra Fria 2 ser mais um modelo mental para pensar a geopolítica contemporânea, do que propriamente uma forma nova de organização dos equilíbrios mundiais. Concordo com Smith quando ele refere que o ano de 2024 será um momento decisivo para se compreender em que direção evoluirá o mundo, mas não é ainda percetível qual é o outro bloco que desempenhará as funções da União Soviética na Guerra Fria 1.
É aqui que Noah Smith acrescenta uma outra terminologia, a de Novo Eixo, para designar a pressuposta convergência de interesses entre a China, a Rússia e o Irão.
A consistência deste Eixo é bastante discutível. Primeiro, porque a China não vive dias de superpotência evoluindo com muita margem de liberdade, devido sobretudo à dimensão da sua crise imobiliária, que constitui aliás uma ameaça real à estabilidade do sistema financeiro internacional. Segundo, a Rússia, embora seja guiada pela ambição de Putin em restaurar a história e o imperialismo czariano, não está propriamente à vontade depois da sua jogada de 2022 na Ucrânia. Terceiro, o próprio Irão com o seu modelo de autoritarismo teocrático não lidera de todo a onda islâmica. Esse xadrez é mais complicado e há problemas no interior do mundo islâmico que continuam a dificultar ações comuns. Não pode ignorar-se, entretanto, que a arrogância israelita em Gaza e na Cijordânia está a criar condições para convergências inesperadas no interior do mundo islâmico. Mas daí a considerar o tal “Novo Eixo” como algo de consistente vai uma grande distância. E daí que, com ou sem declínio americano, a questão do bloco opositor da pressuposta Guerra Fria 2 está longe de assumir a clareza do papel então desempenhado pela União Soviética.
Com as eleições americanas de 2024 a representarem o elefante que pode partir a louça toda, a verdade é que se vive uma multipolaridade de grande indeterminação. Tenho assim dúvidas que Guerra Fria 2 mesmo entendida como simples modelo mental seja o mais adequado para pensarmos esta estranha geopolítica. A ter de mobilizar novos conceitos e modelos eles estarão provavelmente mais próximos de teorias do caos do que doutra fonte qualquer. E isso é que verdadeiramente representa a dimensão do problema que hoje envolve a ordem internacional.
Não sou catastrofista ao ponto de considerar que situações desta natureza podem reconduzir-se a conflitos de grande envergadura, não apenas de âmbito regional. Mas que os cenarizadores da geopolítica internacional estarão muito provavelmente a rever as suas antecipações e cenários disso não tenho muitas dúvidas.
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