quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

UCRÂNIA: AS DUAS ENCRUZILHADAS, A DELES E A DA UNIÃO

 

(Dois anos de uma guerra produto de uma invasão brutal seriam, em princípio, suficientes para já existir uma antecipação mais plausível de cenários de encerramento do conflito. Mas não é isso, infelizmente, que temos diante de nós. Estamos perante um conjunto complexo de fatores de indeterminação, diria mesmo de encruzilhadas à luz das quais se perfilam escolhas bem difíceis. Por isso, no título do post aludo a duas encruzilhadas, a que o governo e o povo da Ucrânia enfrentam e a que pesa sobre as sociedades ocidentais, particularmente sobre os países da União Europeia. Neste último caso, por mais que douremos a pílula, a verdade é que a Europa tem de preparar-se para outras expectativas relativamente à ajuda americana e ao seu papel na NATO. Esta semana, para minha incómoda surpresa, vi pela primeira vez cabeças pensantes americanas a colocar a questão centrada na ainda possível decisão dos Democratas americanos de escolher um outro candidato que não Joe Biden para inverter a força eleitoral face ao despudorado Trump. Foi o caso de Ezra Klein e isso representou para mim um excelente indicador de que não são apenas ameaças, o lobo está mesmo aí e os Democratas parecem perdidos nessa tentativa de inverter o rumo das coisas. A relevância das duas encruzilhadas a que aludi surgem reforçadas pelo ano de todas as eleições que 2024 representa. Quer isto dizer que a abordagem às escolhas que se ocultam nessas encruzilhadas se mistura com decisões políticas de mais largo espectro, de que obviamente as eleições americanas representam o grande exemplo. O que gera complexas interações nos processos de decisão que deveriam convergir na ajuda ao esforço de defesa ucraniana. É sobre estas duas encruzilhadas que gostaria de refletir de forma mais sistemática.)

Comecemos pelas difíceis escolhas enfrentadas pelo governo e povo ucraniano. Ficou já claro para a opinião pública internacional que a ideia da contraofensiva ucraniana foi um erro de cálculo, que subestimou provavelmente duas coisas, o modo como entretanto os Russos prepararam a defensiva e a magnitude e rapidez da ajuda ocidental a esse esforço. Não sendo muito adepto de comparações históricas inter-temporais, não posso deixar de me recordar do que aconteceu na Geórgia nos tempos que precederam a invasão russa, embora revertida uns tempos depois. O então e instável Presidente Mikheil Saakashvil, na sequência de ataques de rebeldes prorussos da Ossétia do Sul a aldeias da Geórgia (presume-se que orquestradas em combinação com Putin), aventurou-se numa operação militar sobre as zonas de conflito na Ossétia do Sul na noite de 7 de agosto 2008, não resistindo à armadilha e dando depois origem a uma invasão russa que foi já na altura de reversão muito difícil. O contexto de agora é obviamente diferente, a estratégia de Putin está já desmascarada, ao passo que, em 2008, uma grande parte da diplomacia europeia, com Sarkozy à cabeça, ainda namorava Putin para o trazer ao mundo dos interesses ocidentais.

Mas ignoremos o mais que provável erro da contraofensiva e concentremo-nos na encruzilhada que Zelensky e o povo ucraniano enfrentam por agora. O que os dados nus e crus nos dizem é que cerca de 20% do território da Ucrânia independente está hoje sob o controlo russo e com uma simples extrapolação da situação atual não se percebe como é que as forças Ucranianas sem o envolvimento direto da NATO poderão inverter esta posição e reformular as condições para uma possível negociação. Para mais, o declínio da população ucraniana prossegue inexoravelmente por vias diversas. A perda objetiva da população correspondente aos territórios ocupados, as perdas humanas da guerra e o êxodo para ocidente, próximo como a Polónia ou mais remoto, convergem no depauperamento da população ucraniana. O principal impacto deste declínio é a cada vez menor probabilidade do recrutamento para a guerra poder ser concretizado voluntariamente e não de forma coerciva, o que penaliza seriamente o apoio popular ao esforço de guerra.

Nestas difíceis condições e tendo em conta que o tempo joga a favor de Putin e não da Ucrânia, a encruzilhada parece óbvia. Ou a Ucrânia se prepara politicamente para negociar admitindo perder parte do seu território, não direi os atuais 20%, mas algo em torno desse referencial, ou investe decisivamente na possibilidade de recuperar parte desse território e impor a Putin um novo contexto de negociação. O problema é que esta última alternativa se cruza com a encruzilhada europeia, exigindo um posicionamento ocidental que pode precipitar o envolvimento direto da NATO.

Olhemos agora para a encruzilhada europeia.

Indo além da retórica, a reação dos agricultores polacos à entrada de produtos agrícolas ucranianos é uma simples antecipação do grosso das implicações que serão provocadas pela integração europeia da Ucrânia. As sondagens de opinião pública europeia que têm sido publicadas vão mostrando a erosão da confiança numa vitória ucraniana capaz de suster o expansionismo russo. Com exceção do choque energético suscitado pela invasão russa, não há propriamente uma matéria relevante em que as condições de vida europeias tenham sido afetadas de modo decisivo com a necessidade de ajuda à Ucrânia. O esforço de defesa e segurança europeia para fazer face ao novo contexto de desengano sobre a ambição russa e capaz de internalizar a eventual diminuição da solidariedade americana só agora vai começar a influenciar os orçamentos de estado e, consequentemente, a influenciar as escolhas públicas a submeter aos eleitorados. Estamos assim apenas na antecâmara de ver as condições de vida afetadas e mesmo assim os índices de confiança numa vitória ucraniana estão inexoravelmente a baixar. Além disso, a resposta imediatista à ameaça populista vai afastando a discussão política dos cenários mais gravosos de política externa enfrentados pela União Europeia. Veja-se a pobreza do debate político-eleitoral em Portugal nessa matéria. Veremos o que as próximas eleições europeias nos reservarão sobre a matéria.

Se há dimensão em que pelo menos a encruzilhada europeia está mais clara do que sempre esteve é a perceção real do que representa efetivamente a ameaça russa e do expansionismo de Putin. Uma das matérias mais relevantes que a muito citada neste blogue obra Les Aveuglés de Sylvie Kauffman nos traz é a profunda análise realizada pela autora sobre o longo namoro europeu com Putin, na ilusão de que seria possível trazê-lo para uma lógica de cooperação europeia em sentido amplo. O trabalho da jornalista é exemplar no sentido de identificar as hesitações de uma grande maioria das lideranças europeias e não estamos apenas a falar da atração de parte do SPD alemão pelas benesses da Gazprom e outras ofertas de Putin.

Mas a maior fonte de indeterminação resulta do facto das duas encruzilhadas serem interdependentes. Ética e moralmente cabe aos Ucranianos decidir o que fazer. Mas em boa regra essa capacidade de escolha não é autónoma. Ela cruza-se com a encruzilhada europeia.

 

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