quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

JÁ CHEGÁMOS À MADEIRA?

 

(A Voz popular lá terá as suas razões e fundamentos para certas expressões que fazem parte do nosso ideário de cidadãos com raízes. O título do post recupera uma dessas expressões que pode ser interpretada como deselegante e até injusta para uma das nossas únicas duas autonomias regionais. Mas a verdade é que sem querer pronunciar-me de novo sobre a deriva de espetáculo mediático de que o Ministério Público e a Polícia Judiciária parecem apostados em fazer gala e sobre o contributo enorme que essa política espetáculo hoje oferece às formações políticas que se esgotam no aproveitamento oportunista de perceções mediáticas, o caso da alegada corrupção na Madeira merece uma reflexão da minha parte. Tenho suficiente contacto profissional e como cidadão com a Região Autónoma da Madeira para uma reflexão distanciada e, quanto o possível, rigorosa sobre este anátema de possível corrupção que passa a pairar sobre a Região e cujas consequências políticas é ainda cedo para vislumbrar com precisão.)

E começo, como não podia deixar de ser, com algumas reflexões para afastar quais quer conflitos de interesses que possam estar subjacentes à minha reflexão.

Começo por referir que tenho tido algumas experiências de trabalho na RAM que podem estruturar-se nos seguintes tipos: (i) experiências de avaliação de programas de Fundos Europeus conduzidos pelo Governo Regional; (ii) contactos com o IFDR – Instituto Financeiro para o Desenvolvimento Regional na área do planeamento; (iii) contactos com o Instituto para a Qualificação I.P no âmbito do ensino profissional e prospetiva de qualificações para a Região; (iv) participação em trabalhos de planeamento estratégico territorial como o foram o Plano Regional de Ordenamento do Território e o Plano Diretor Municipal do Funchal.

Destes trabalhos, de contacto essencialmente realizado com a administração pública regional e local, recolhi a melhor das impressões possíveis sobre a qualidade técnica e humana desses profissionais. Mesmo em tempos do consulado de Alberto João Jardim (AJJ) , a minha perceção da administração regional dissociava-se claramente do que era a minha visão de alguém do continente sobre o estilo de ação política de AJJ, embora deva também reconhecer que a minha impressão do AJJ internacional e líder prestigiado em organismos como a Assembleia das Regiões da Europa fosse totalmente dissonante, para melhor, daquela minha outra perceção. É como se houvesse dois AJJ.

Do ponto de vista de contacto com as personalidades detidas (uma semana para iniciar interrogatórios não fica bem a um Estado de Direito) e com o arguido Miguel Albuquerque, limitei-me a duas reuniões com este último, era ainda ele Presidente da Câmara do Funchal. No âmbito de propostas incómodas que fazíamos sobre a necessidade da sustentabilidade do modelo da Cidade exigir novos rumos para o licenciamento de novas construções, fiquei agradavelmente surpreendido com a qualidade da interação, rigor de análise e abertura de discussão dos temas. Com os restantes implicados, não tenho qualquer referência de contacto.

Enunciados estes registos de presença efetiva na Região, a nuvem de alegada corrupção que este caso nos traz não é para mim nada de surpreendente. Isso deve-se ao facto de eu ter em conta sobretudo que a Região não conseguiu ainda mudar o seu modelo de desenvolvimento de uma articulação fortíssima entre turismo-imobiliário e infraestruturas para um outro modelo, com sinais de diversificação de especialização produtiva e sobretudo mais intensidade de incorporação de conhecimento. O modo como a Região organizou a segunda fase de implementação da sua Estratégia Regional de Especialização Inteligente (2030) foi promissor e era um bom augúrio. Mas os interesses instalados da especialização instalada são muito fortes e, como sabemos, o turismo não é o setor ideal para ser plataforma de uma mudança estrutural de especialização. O modo como a alegada corrupção é noticiada está claramente encrustado nesse modelo.

Onde me parece haver diferenças (essencialmente políticas e de fenomenologia de interesses) é na não comparação possível entre o caudilhismo absorvente de AJJ e os novos interesses instalados. O caudilhismo (ou amiguismo, se preferirem) de AJJ era indiscutível, conhecido de todos, fortemente intrusivo e interveniente na formação de investimento, mas nunca houve uma notícia que fosse de enriquecimento próprio e de locupletamento indevido. Não há um cidadão no Funchal e na RAM, mesmo os seus adversários mais acérrimos, que o acuse de enriquecimento indevido e a situação económica de hoje de AJJ confirma-o em pleno. Não lhe são assacados sinais exteriores de riqueza duvidosos. Tratava-se, assim, de um caudilhismo de autoridade carismática, que nos parecia por vezes boçal aos olhos da urbanidade do continente. Creio que o mesmo não possa ser dito sobre as personalidades agora implicadas, embora me espante se as acusações a Miguel Albuquerque vierem a ter evidência de prova inequívoca. Já se analisar o percurso de Pedro Calado, certamente que teremos dúvidas, por diferenças de estilo político, de padrões de vida, de condições de inserção na sociedade funchalense, mas obviamente que terá todo o direito a uma defesa consistente e à apresentação de um argumentário que contrarie o Ministério Público.

O que queria sublinhar é que embora partilhe as dúvidas do cidadão comum sobre esta nuvem de corrupção, acreditando que desta vez o Ministério Público terá material de prova mais consistente do que o existente nas mais recentes incursões de justiça espetáculo, isso não chega para desacreditar a minha convicção sobre o passo de gigante da autonomia regional.

E embora me pareça que, face ao imbróglio formado com a demissão de Miguel Albuquerque, a classe política madeirense já viveu melhores dias, revelando sinais óbvios de desqualificação e degradação, isso também não ofusca a minha defesa da autonomia regional.

 

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