(Vai por aí uma grande agitação sobre a inversão de rumo eleitoral que as eleições regionais açorianas poderão ter provocado no desenvolvimento do momento político em Portugal. Sucedem-se as mais catastrofistas sínteses possíveis, do tipo “o Chega é agora um problema do PS” ou “o PS de Pedro Nuno Santos está em plano inclinado” faltando apenas indicar sob que pendente se fará esse declínio. Espanta-me sinceramente que as cabeças pensantes que ladearam PNS na sua ascensão à liderança do PS não tenham antecipado o que poderia acontecer nos Açores e, por tabela ou contágio, observar-se no continente. A dificuldade de formação de maiorias estáveis à esquerda e à direita sem a participação da extrema-direita nacionalista-populista e antissistema é um fenómeno político em formação já há algum tempo, tem várias manifestações no ocidente democrático, com matizes em função dos contextos socioeconómicos nacionais. Imaginar que Portugal estaria imune a essas movimentações é pura ingenuidade e um sinal preocupante de falta de maturidade política. Numa outra formulação, à luz do contexto nacional, imaginar que seria possível circunscrever a ideia do papão da extrema-direita do Chega à penalização do PSD nesse processo, obrigando-o a definir-se quanto a essa linha vermelha e admitir que não haveria qualquer efeito de ricochete sobre o PS dessa matéria equivale a navegar nas mesmas águas da imaturidade política ou da simples arrogância que pode pagar-se caro.)
O contexto político alterou-se profundamente e é cada vez mais imperioso distinguir entre o essencial e o acessório. E, neste contexto, o verdadeiramente essencial é a defesa da democracia e o impedimento de que a direita mais xenófoba e reacionária utilize os meandros da democracia para minar a governação democrática e, pondo um pé que seja nessa governação, operar recuos culturais e civilizacionais em conquistas que a construção democrática ajudou a pôr de pé.
Contextualizemos esta questão nos dilemas açorianos.
Sabemos que a AD açoriana ganhou as eleições, acrescentando pouco ao somatório individualizado dos três partidos e não conseguindo por isso conquistar uma maioria absoluta no parlamento regional. Obviamente que Bolieiro e Montenegro perceberam que, no rescaldo do momento, ceder ao convite do Chega para integrar um governo de coligação regional seria entregar o ouro ao barbudo, ou seja, ao PS e a PNS. Por isso, admitiram um cenário de governo minoritário com a possibilidade da abstenção parlamentar (sob que condições é uma outra conversa) do PS para o viabilizar. Em meu entender, sem qualquer surpresa, personalidades politicamente tão diversas como Ana Gomes, Francisco Assis e Pedro Delgado Alves, todas elas declaradamente apoiantes de PNS, pronunciaram-se que admitir essa possibilidade não significaria qualquer venda da alma ao diabo. Quanto a mim, o que essas personalidades fizeram foi simplesmente distinguir entre o essencial e o acessório. Claro que os dinossauros políticos açorianos, com Carlos César a comandar as tropas e o seu filho-delfim a secundá-lo, têm uma ideia diferente sobre o que é essencial e acessório, defendendo que preservar a estratégia eleitoral para 10 de março é mais importante do que barrar a ascensão do Chega em matéria de governação.
Admitindo, o que parece hoje ser menos provável, que o PS ganhe as eleições sem maioria absoluta ou com maioria parlamentar de esquerda na Assembleia da República (o PCP e o Bloco de Esquerda não parecem estar com dinamismo político para tal), o exemplo dos Açores mostra que o PS não terá condições para governar em minoria. Alguém pensa que, depois de levar uma valente bofetada, o PSD dará a sua face e viabilizará um governo minoritário de PNS? Pode questionar-se que efeito terá o esclarecimento desta perceção sobre o comportamento do eleitor de esquerda? Considero que é pouco credível esperar que forçar esta situação conduza o PS a uma eventual maioria absoluta ou parlamentar, já que isso implicaria conquistar votos a grupos sociais que estarão hoje com um pé na AD ou mesmo no Chega.
Não é em meu entender o calculismo político “à la família César” que conduzirá o PS a uma vitória eleitoral. Isso dependerá de seguir com atenção os fatores que determinaram a maioria absoluta do PS e, tarefa mais gigantesca, desmontar, uma por uma e com clareza, as pontas soltas que o último governo de Costa deixou a pairar sobre a sociedade portuguesa (forças de segurança, SNS e professores) e que neste próximo mês irão ter obviamente uma insuportável pressão mediática.
Terá PNS maturidade política suficiente para compreender que o essencial e o acessório se discutem hoje num contexto político totalmente diverso daquele em que fez a sua formação política?
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