sábado, 24 de fevereiro de 2024

QUANDO ALGUÉM PENSA NA ESQUERDA MAIS RADICAL ...

 

(Não estamos habituados a que no universo da esquerda mais radical haja muita gente a pensar em profundidade. O período das causas fraturantes já perdeu o impulso inicial e nos tempos mais recentes o “wokismo” assentou arraiais por estes lados, tendo a onda dos “cancelamentos” esgotado praticamente a energia combatida deste universo. Por isso, quando alguém com proximidade a este campo aparece com algum pensamento estruturado para o nosso tempo vale a pena falar sobre ele, para registo de memória futura. É este o caso da filósofa catalã Marina Garcés que o ÍPSILON nos traz esta sexta feira a conhecimento, numa entrevista realizada por vídeo-conferência pelo jornalista Pedro Rios. Ligada ao movimento coletivo de pensamento e ação Espai en Blanc, que emergiu a partir da ocupação de um edifício no tão badalado bairro de Grácia em Barcelona, a filósofa catalã surge na entrevista a abordar temas ousados, mas que me parecem essenciais para tentar compreender os contornos da sociedade de conhecimento nos dias de hoje. A entrevista surge no âmbito da publicação em Portugal de uma obra da filósofa catalã Novo Iluminismo Radical pela Orfeu Negro.)

Como não tinha qualquer referência da obra de Marina Garcés, a entrevista mereceu-me atenção e leitura porque não é vulgar nos tempos de hoje ouvir falar de iluminismo, adjetivado de radical, é certo. Partindo de um conceito curioso, o de que vivemos num mundo de analfabetismo ilustrado (“sabemos tudo mas não podemos nada”), ou seja de que nunca tivemos tanta informação e conhecimento disponível e a construir e isso não nos resolve o problema da incapacidade de atuação consequente, a filósofa catalã aventura-se por domínios que estão à altura das ambições transformativas do radicalismo. Tudo se desmorona à nossa volta e produto de uma impotência de combater o catastrofismo, não conseguindo transformar o acesso ao conhecimento (princípio do iluminismo) em algo que permita melhorar as condições do ser humano.

A luta contra o dogmatismo passaria assim, segundo a filósofa catalã, por novas formas de aceder e trabalhar o conhecimento, questionando entre outros domínios o da educação: “(…) Não é só o sistema educativo em sentido estrito: precisamos de uma disposição cultural e educativa para nos entendermos como parte de uma sociedade que enfrenta problemas comuns. Não acho que seja assim que se aprende hoje, pelo contrário. Temos esta anomia social: seres que comunicam muito, mas que estão cada vez mais isolados, que não se sentem. Sentimos que partilhamos uma ameaça, mas não um problema comum. O tempo da urgência parece impossibilitar estas mudanças, que são culturais, políticas. Boas soluções exigem que sejam levantados bons problemas ou boas perguntas, caso contrário, estamos a dar a resposta errada”.

Escusado será relembrar a importância da filosofia no levantamento de bons problemas ou boas perguntas. Esta era também a atitude fundamental da detetive Liz Travers (Jodie Foster) no Night Country – colocar as perguntas certas para aprofundar e dar sequência a uma investigação por mais complexa que ela possa ser.

Entre as novas formas de trabalhar o conhecimento está o combate ao pensador pretensamente isolado numa torre de marfim: ”A imagem do pensador isolado a olhar para o que se passa na sua sociedade, a tentar teorizar sobre, e não com o que se passa, é uma imagem produzida por certas classes sociais, uma certa academia, uns certos meios de comunicação social que separam quem pensa e quem age, quem teoriza e quem intervém”. Com esta referência, Garcés coloca-se ao lado dos que pensam sobretudo a partir do devir das situações, não alinhando com os que buscam a essência ou a substância. O alcance nobre do radicalismo está afinal no reconhecimento da utilidade do conhecimento para a transformação da experiência coletiva. Este guia de orientação levaria por certo o radicalismo a formas bem mais impactantes do que as batalhas do wokismo e dos cancelamentos.

 

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