Até há bem pouco, o nome de Nuno Camarneiro (NC) só me era familiar por via de com ele ocasionalmente me "cruzar" em listagens de docentes ou conversas de corredor. Com efeito, e entre outras meritórias atividades (investigador na Universidade de Aveiro, após uma licenciatura em Engenharia em Coimbra e um doutoramento em CIência Aplicada ao Património Cultural em Florença, bloguista em "Acordar um Dia" e poeta e escritor de contos e romance), NC é professor no Curso de Conservação e Restauro da Universidade Portucalense do Porto.
A sua recente consagração enquanto vencedor da edição de 2012 do
Prémio Leya, já a quinta, fez crescer em mim a curiosidade por este autor largamente
desconhecido do grande público. Procurei o livro (“Debaixo de Algum Céu”)
premiado por um júri a que presidia Manuel Alegre e que integrava
designadamente Nuno Júdice e Pepetela, mas foi-me dito que só estaria à venda em
março e assim tive de me ficar pelo romance de estreia (“No Meu Peito Não Cabem
Pássaros”). Que li num ápice e com enorme agrado.
A narrativa é engenhosa nos seus cinco tempos (exórdio, confronto,
acerto, assombro e fecho) e ao eleger um enredo associando um momento situado
em 1910 em que se semeou o pânico à passagem de dois cometas pela Terra com três
homens especiais habitando três cidades distintas e distantes. Karl é Kafka, um
imigrante que lava vidros num arranha-céus de Nova Iorque e se vê depois
confrontado com uma limitação física, o desemprego e as agruras da paixão.
Jorge é Borges, um menino que cresce em Buenos Aires ancorado numa prodigiosa inventividade
e numa inimaginável ausência de limites. Fernando é Pessoa, um rapaz que atravessa
o Atlântico para chegar à casa de uma tia em Lisboa e a uma vivência
melancólica e introvertida em que o amar é uma fantasia e o escrever um misto
de obsessão, libertação e alucinação.
Mas a escrita de NC não é apenas reveladora de uma excecional e
surpreendente maturidade pessoal e vivencial para quem nasceu em 1977, ela é
também bela e impressiva pela sensibilidade das imagens a que recorre e pela
riqueza das metáforas em que é fértil. Ouçamos os três protagonistas à luz da sua bafejada criatividade:
·
“Karl empilha palavras já inúteis, palavras
inocentes e desusadas. Amor, mulher, futuro, liberdade, feliz, palavras assim. A
exposição torna-se ridícula e ambos se apercebem de que Karl se guia mais por
medos e recusas do que por ideias e projetos. É um homem descontente sem ideias
para felicidades.” / “Quem nunca quis dormir até a vida ser um lugar
praticável, quem não conhece o desconsolo de vestir cada dia uma pele curta nas
mangas, que vá abanar este homem, que o chame com a voz cheia de realidades e
diga: ‘Levanta-te, Karl, levanta-te à hora de viver’.” / “O fim há de vir do
mar que é de onde vem tudo. Para o mundo arder tem o mar de arder ou fazer-se
fogo, que é a mesma coisa, o mundo não arde enquanto houver água no mar.” / “São
palavras que só um deus se permite dizer porque só ele sabe do tempo de cada
um. Os homens vão andando como podem, com o atraso ou a pressa de quem não sabe
nada nem tem outro lugar para onde ir.”
·
“Afinal, escrever era trazer o mundo na
algibeira.” / “O mundo tem dois lados, esse que se vê e ouve, que aquece e faz
doer e segue à toa sem saber como se conta uma história; e depois o outro, da
noite e da solidão, onde os rumos se decidem e se assenta que tudo o que
aconteceu serve ao que há de acontecer.” / “O que vai numa avó que vai: partes
boas da infância chegada ao lume, uma certa forma de falar que já ninguém
pratica, a memória ridícula e livre de se ter sido ingénuo, insolente e parvo,
cheiros de comida feita de ingredientes que nunca mais se voltarão a juntar, a
face possível do passado, um calor de encher casas, nomes de pessoas que só ali
permaneciam reais, as horas quando não terminavam nunca. Coisas que ficam de
uma avó que foi: um epitáfio vago, a crença em deus por respeito e procuração,
uma saudade inútil e imprescindível, o súbito envelhecimento de pai e mãe, um
passo dado na fila do tempo.” / “Quanto mais velhos são os defuntos menos
amigos comparecem ao enterro, para um funeral simpático há que morrer cedo.” / “Nem
mil Jorges poderiam alguma vez preencher o que falta. O mundo é um vazio
desmedido que não queremos nem podemos aceitar, os homens também, as cidades,
os países, os planetas também. Não há palavras que encham tanto vazio. Os
livros que deixamos são obras de filigrana, fios ténues de sentido com que
delimitamos o volume do que não entendemos.” / “Há homens tristes e homens
alegres e há também homens velhos. A idade é um caldo frio de emoções passadas,
sabores e aromas que se propõem ao acaso na memória dos velhos. O tempo gasta
tudo o que roça, pedras e corpos, a todos o tempo arredonda as arestas como se
lhes combatesse as formas. O tempo vai-nos mastigando para que a morte nos ache
tenros e dóceis. Também a morte é uma senhora antiga com os dentes cansados de
roer.”
·
“Portugal é assim, diminutivo e manso. O que
foi chegando fez-se à escala e por cá ficou, as Indiazinhas, as Americazinhas,
os pretitos, pobrezinhos. Os Portugueses não querem nada que não possam meter
no bolso. Como é que esta gente descobriu tanto mundo?” / “Alguns homens são de
tripas e escamas, depois de amanhados ficam um pouco que não chega e mal se vê.
Há outros em que tudo se aproveita, homens com segredos nas entranhas e na
pele, que contam histórias sem fim.” / “Todos deveríamos ter diferentes
palavras para ‘eu’: o eu que eu sinto, o eu que tu vês, o eu que eu não sou.” /
“O seu inimigo é o agradável, o consensual, o ligeiro e todas as outras formas
de nada que são modos de saltar do berço à cova sem importar a ninguém e muito
menos a si próprio.” / “Quem foi que disse que o xadrez se tornou muito mais exigente
assim que inventaram o parceiro? Ninguém o disse, mas é assim também com as
mulheres.” / “Um retrato traz-nos um pedaço de mundo visto pelos olhos da
realidade. É assim que eu sou, assim me veem. Que máquina mostrará um dia o
outro lado da gente? Quem há de retratar os bastidores desarrumados das nossas
poses serenas.” / “Os homens duplicam-se a cada cruzamento, os homens são
assim. Caminho para aqui, caminho por ali, uma direção na vida e outra no
pensar.” / “Um dia amanhã e outro dia depois, tempo ao tempo. Viver como quem
passeia cá por baixo, distraído de um universo aonde se há de voltar em alguma
hora, até que sopre um frio de fim de tarde e uma voz chame para dentro, ‘vamos,
que vem noite’.”
E assim me fico numa sã expectativa pela descoberta da mais
recente obra deste jovem que tão exponencialmente parece querer passar ao
estatuto de certeza da literatura portuguesa atual…
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