quarta-feira, 18 de setembro de 2013

UM BOM GASPAR NA JUSTIÇA


Em meu entender, não foi dado o devido relevo ao discurso de posse do novo presidente do Supremo Tribunal de Justiça, o juiz-conselheiro António Henriques Gaspar. Uma peça notável e que merece ser lida integralmente para poder ser apreendida em toda a lógica da sua estruturação, mas de que aqui quero fazer sobressair três tópicos mais conformes à conjuntura que nos envolve e à deformação pró-económico (que não necessariamente economicista) a que profissionalmente não aprendi a resistir cabalmente.

Primeiro, uma denúncia fundamental de um entendimento da Justiça como “produto” e da eficácia como seu critério definidor:

Clama-se por um outro modelo de justiça - não tanto numa perspectiva institucional, mas sobretudo nas formas, nas abordagens, nos fins e nas prioridades; pretende-se impor a extensão do modelo do mercado a todos os sectores da vida, e também às instituições de justiça.
Modelo que responda ao primado das regras do jogo da economia; a justiça seria então uma actividade performativa, transformada em serviço que deve assumir a eficácia como valor central, sendo a lei reconduzida a um simples parâmetro de decisão, como um preço ou um custo de transacção.
A função da Justiça não seria já conciliar interesses contraditórios, nem construir, no domínio penal, equivalências justas entre um acto e a punição, mas ‘produto’ e instrumento de segurança na finalidade cardinal da política.
A eficácia definiria o acto de justiça, transformada em ‘produto’ na empresa de serviços a que se querem assimilar as instituições. (…)
Mas o Estado e as suas instituições fundamentais, particularmente a instituição judicial, não são, nem podem ser tratados, como empresas em regime de mercado.
Mesmo nas concepções ideológicas do Estado mínimo, a Justiça tem de estar do lado do melhor Estado; Estado mínimo exige Justiça máxima.


Segundo, uma reafirmação essencial do lugar central de uma Justiça ao exclusivo serviço dos cidadãos para a realização efetiva dos valores do Estado de Direito:

Este tempo crucial impõe-nos a reflexão permanente sobre o modelo de Justiça que a República deve aos cidadãos, e que permita cumprir as promessas republicanas.
Modelo pelos princípios - e não na organização; a acentuação principialista pode conviver com diversos modos de organização.
A Justiça que queremos - e em que nos empenhamos quotidianamente - dará dimensão efectiva aos valores fundadores do Estado de Direito: o juiz, garante do respeito pelo princípio da legalidade; a preeminência do direito na acção de todos os poderes; a afirmação jusfundamental; e, nos limites das regras constitucionais e dos princípios constitutivos, a protecção contra todo o arbítrio.
A Justiça que exercemos, no enquadramento institucional apropriado, respeitará a igualdade de todos os cidadãos perante a lei, impedindo discriminações; não sendo um nivelador social, a Justiça assegura a igualdade através do processo, independentemente da competência social de acção de cada um.
A Justiça que defendemos está exclusivamente ao serviço dos cidadãos, como resguardo dos valores individuais e da protecção dos direitos fundamentais.
A Justiça tem de realizar os equilíbrios da democracia e dos valores do Estado de Direito, sobretudo nas situações de incerteza e de forte densidade social e política das crises, em que se conjugam a indeterminação das causas e a abstracção dos causadores.
A eminente dignidade da pessoa humana, como princípio fundador da República; os princípios da proporcionalidade, da confiança, da solidariedade, da igualdade, da segurança jurídica, da equidade e da justiça constituem imperativos no cumprimento da obrigação de fazer justiça.
São princípios com um conteúdo mínimo irrenunciável, que marca a linha de fronteira entre o Estado material de direito e o Estado formal de lei.


Terceiro, ainda uma denúncia fundamental da visão “mercado-cêntrica” que tende a postular uma relação de causalidade direta entre o funcionamento da Justiça e o desempenho da Economia:

A justiça sofre frequentemente a atribuição da responsabilidade pelo mau desempenho da economia.
Responder à asserção é tarefa metodologicamente difícil; sem a identificação dos fundamentos da afirmação não será possível responder senão com outra afirmação.
Os sistemas de justiça que funcionem com eficiência e no respeito por princípios estruturantes, têm, com certeza, uma função essencial na criação de confiança e na estabilidade das relações sociais - e, por isso, terão reflexos na economia.
A independência e a eficiência de um sistema de justiça constituem factores de confiança.
Mas nem mais nem menos do que relativamente aos diversos campos da vida social em que a justiça deva intervir; a criação de um ‘ambiente atractivo para os negócios’ não pode ser autonomizada como fim.
Esta visão é fechada e mercado-cêntrica, própria de uma cultura dominada pela razão instrumental da economia.
A relação de causalidade directa ou quantificada entre a justiça e o crescimento económico não está demonstrada.
A Justiça não fez a crise; bem ao contrário, sofre a crise e as consequências das perturbações da economia; tendo a função de definir direitos, não pode inventar valor onde valor não exista.
Em recente proposta de exercício - Justice Scoreboard - a Comissão Europeia retoma os critérios que apresenta como condições de um ‘ambiente atractivo para a economia’ - qualidade, independência e eficiência, a previsibilidade, o tempo razoável, decisões exequíveis, protecção do direito de propriedade; execução dos contratos e de débitos privados.
Podemos dizer que, no essencial, preenchemos estes critérios; que não seja pela justiça que seja afectado o crescimento económico.
Os tribunais são independentes; os juízes decidem com imparcialidade; as decisões são previsíveis e existem condições para a criação de estabilidade jurisprudencial; a jurisprudência não menoriza a estabilidade dos contratos; a propriedade é respeitada como valor constitucional.
Mas é necessário dizer claro que num sistema de valores, as decisões judiciais não são determinadas pelas consequências que possam ter na economia; a justiça não é consequencialista; é deontologista.
Cumprimos os critérios axiológicos e estruturais para um ‘ambiente económico’ atractivo, a que se refere o documento da Comissão Europeia.


Este novo Gaspar que agora surge no centro da nossa vida pública – pois que passou a ocupar o lugar correspondente à quarta figura do Estado português (a par do presidente do Tribunal Constitucional) – terminou em beleza a sua entrada em funções ao ligar o seu “comprometimento” às palavras do "Projecto" de Sophia: “Esta foi a sua empresa: reencontrar o limpo do dia primordial. / Em contínua memória de um projecto que sem cessar de novo tentaremos”.

Às vezes, cada vez menos vezes embora, “isto” até parece um país!

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