(Breves notas em
torno da abertura do Túnel do Marão, com selfies ou sem selfies)
Obra é obra, e sobretudo quando ela impressiona e é relevante. Não há
governo que rejeite o impacto da engenharia. O português médio gosta da obra física,
o seu imaginário não coabita bem com a sofisticação do imaterial. Na penúria
que vamos atravessando de recursos públicos para investimento e face à
tentativa do atual período de programação de Fundos Estruturais de reduzir ao mínimo
possível o cofinanciamento de infraestruturas públicas, compreende-se a relevância
mediática da inauguração do túnel do Marão. O entusiasmo popular com que
informalmente a infraestrutura foi utilizada antes da sua abertura oficial ao
tráfego decorre do imaginário de obra e é sincero. Do entusiamo político nem se
fala. Aquelas selfies dizem tudo e sobretudo aquela que hoje no Público coloca
Paulo Campos, em primeiro plano, e Sócrates em plano mais secundário, com os
rostos mais sorridentes que terão revelado nesta difícil transição. Coerentemente.
Se há governo que exacerbou para lá do razoável a dimensão das infraestruturas
físicas e dela fez comunicação política agressiva foi o de Sócrates.
Mas o túnel do Marão, para lá da sua imponência e peripécias de concretização,
suscita algumas reflexões. Há também no Público de hoje um excelente artigo de
Manuel Carvalho, que conhece bem a realidade transmontana e duriense e por isso
sabe do que fala e fala bem.
Gostaria de começar por um registo de evidência. A obra ontem inaugurada
compensa ao fim de algumas décadas a penalização que Trás-os-Montes e o Douro
sofreram com a então prioridade atribuída, primeiro ao IP-5 (Aveiro- Vilar
Formoso) e à sua posterior transformação em autoestrada muito antes da ligação
Porto-Bragança estar concluída como bem indivisível (ou seja, com o túnel
construído). As expectativas de localização de investimento empresarial
privado, aproveitando designadamente os sistemas de incentivos com majoração de
benefícios para as áreas interiores, cedo se aperceberam que a região Centro
iria estar mais depressa dotada das infraestruturas necessárias de
atravessamento do que o Norte interior, aliás bastante atomizado entre o Douro
e Trás-os-Montes. A dinâmica de territórios na região Centro como o de Dão-Lafões
provém desse contexto e honra seja feita aos autarcas que perceberam essa nuance competitiva. A penalização dessas
expectativas é tanto mais relevante quando essa precipitação de intenções se
passou num período crucial, que coincidiu com a existência das derradeiras
margens de manobra demográfica que esses territórios interiores apresentavam. Hoje,
quando a injustiça territorial é finalmente compensada, a situação é bem mais desfavorável.
Os significativos milhões investidos ao longo de sete anos na concretização do
túnel irão ter seguramente um retorno social inferior ao que dele resultaria
com um outro tempo para o investimento. Constituem um fecho de injustiça, é um
facto. Irão representar um aumento significativo do nível de acessibilidade à Área
Metropolitana do Porto. Certamente a dinâmica emergente no Douro irá dela tirar
maior proveito do que os territórios de Trás-os-Montes, embora a conectividade
de Vila Real com o Porto seja substancialmente melhorada. O Douro é provável
que continue a utilizar complementarmente outras vias como a da ligação
Amarante-Mesão Frio-Régua, mas irá também beneficiar deste encurtamento de
tempos.
É curioso que, em dia de abertura de uma infraestrutura que melhora sobretudo
a ligação entre o Porto e Vila Real, o primeiro-Ministro António Costa tenha
sublinhado a necessidade de Trás-os-Montes equacionar as oportunidades de
articulação com o território espanhol, o que parece um contrassenso. É que, dada
a concretização a destempo da infraestrutura, imponente é certo e capaz de
reformular o significado da máxima “para lá do Marão …”, os problemas estruturais
de desenvolvimento de Trás-os-Montes e do Douro serão é certo melhor abordados
com a infraestrutura operante, mas o nó górdio da sua resolução continuará a
residir noutras dimensões.
O artigo de Manuel Carvalho é uma longa denúncia do efeito-túnel do IP 4 e sobre
o que ele representou de fator favorecedor do esvaziamento a que o interior Norte
foi sujeito nas duas últimas décadas. O jornalista do Público tem razão em
denunciar a ausência de integração de políticas, o folclore de algumas
iniciativas que os Fundos Estruturais têm ajudado a promover (MC é particularmente
cáustico quanto ao Douro Harvest) e sobretudo a inexistência de vontade política
para uma efetiva realocação de serviços públicos que ajude a fixar alguns quadros.
Dou um exemplo desta coabitação de atomização local e falta de interesse e
vontade política central. O Museu do Douro aguarda por participações financeiras
mais relevantes das autarquias do Douro e que o Governo reponha dois anos de
comparticipações não pagas ao Museu. Quem se preocupa? Quem barafusta? Quem
denuncia este desinteresse?
A nova infraestrutura do túnel talvez vá servir as emergências que Manuel
Carvalho identifica como a esperança remota da região interior: o turismo, a
economia do vinho no seu topo de protagonistas não na agonia dos pequenos
produtores, a nova agricultura, a esperança de uma UTAD renovada e capaz de não
olhar para o seu umbigo. Mas a sua existência não compensará a penalização do
passado, por mais sorridentes que se apresentem os rostos nas selfies que abrilhantarão
as recordações dos protagonistas.
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