domingo, 8 de maio de 2016

O TÚNEL




(Breves notas em torno da abertura do Túnel do Marão, com selfies ou sem selfies)

Obra é obra, e sobretudo quando ela impressiona e é relevante. Não há governo que rejeite o impacto da engenharia. O português médio gosta da obra física, o seu imaginário não coabita bem com a sofisticação do imaterial. Na penúria que vamos atravessando de recursos públicos para investimento e face à tentativa do atual período de programação de Fundos Estruturais de reduzir ao mínimo possível o cofinanciamento de infraestruturas públicas, compreende-se a relevância mediática da inauguração do túnel do Marão. O entusiasmo popular com que informalmente a infraestrutura foi utilizada antes da sua abertura oficial ao tráfego decorre do imaginário de obra e é sincero. Do entusiamo político nem se fala. Aquelas selfies dizem tudo e sobretudo aquela que hoje no Público coloca Paulo Campos, em primeiro plano, e Sócrates em plano mais secundário, com os rostos mais sorridentes que terão revelado nesta difícil transição. Coerentemente. Se há governo que exacerbou para lá do razoável a dimensão das infraestruturas físicas e dela fez comunicação política agressiva foi o de Sócrates.

Mas o túnel do Marão, para lá da sua imponência e peripécias de concretização, suscita algumas reflexões. Há também no Público de hoje um excelente artigo de Manuel Carvalho, que conhece bem a realidade transmontana e duriense e por isso sabe do que fala e fala bem.

Gostaria de começar por um registo de evidência. A obra ontem inaugurada compensa ao fim de algumas décadas a penalização que Trás-os-Montes e o Douro sofreram com a então prioridade atribuída, primeiro ao IP-5 (Aveiro- Vilar Formoso) e à sua posterior transformação em autoestrada muito antes da ligação Porto-Bragança estar concluída como bem indivisível (ou seja, com o túnel construído). As expectativas de localização de investimento empresarial privado, aproveitando designadamente os sistemas de incentivos com majoração de benefícios para as áreas interiores, cedo se aperceberam que a região Centro iria estar mais depressa dotada das infraestruturas necessárias de atravessamento do que o Norte interior, aliás bastante atomizado entre o Douro e Trás-os-Montes. A dinâmica de territórios na região Centro como o de Dão-Lafões provém desse contexto e honra seja feita aos autarcas que perceberam essa nuance competitiva. A penalização dessas expectativas é tanto mais relevante quando essa precipitação de intenções se passou num período crucial, que coincidiu com a existência das derradeiras margens de manobra demográfica que esses territórios interiores apresentavam. Hoje, quando a injustiça territorial é finalmente compensada, a situação é bem mais desfavorável. Os significativos milhões investidos ao longo de sete anos na concretização do túnel irão ter seguramente um retorno social inferior ao que dele resultaria com um outro tempo para o investimento. Constituem um fecho de injustiça, é um facto. Irão representar um aumento significativo do nível de acessibilidade à Área Metropolitana do Porto. Certamente a dinâmica emergente no Douro irá dela tirar maior proveito do que os territórios de Trás-os-Montes, embora a conectividade de Vila Real com o Porto seja substancialmente melhorada. O Douro é provável que continue a utilizar complementarmente outras vias como a da ligação Amarante-Mesão Frio-Régua, mas irá também beneficiar deste encurtamento de tempos.

É curioso que, em dia de abertura de uma infraestrutura que melhora sobretudo a ligação entre o Porto e Vila Real, o primeiro-Ministro António Costa tenha sublinhado a necessidade de Trás-os-Montes equacionar as oportunidades de articulação com o território espanhol, o que parece um contrassenso. É que, dada a concretização a destempo da infraestrutura, imponente é certo e capaz de reformular o significado da máxima “para lá do Marão …”, os problemas estruturais de desenvolvimento de Trás-os-Montes e do Douro serão é certo melhor abordados com a infraestrutura operante, mas o nó górdio da sua resolução continuará a residir noutras dimensões.

O artigo de Manuel Carvalho é uma longa denúncia do efeito-túnel do IP 4 e sobre o que ele representou de fator favorecedor do esvaziamento a que o interior Norte foi sujeito nas duas últimas décadas. O jornalista do Público tem razão em denunciar a ausência de integração de políticas, o folclore de algumas iniciativas que os Fundos Estruturais têm ajudado a promover (MC é particularmente cáustico quanto ao Douro Harvest) e sobretudo a inexistência de vontade política para uma efetiva realocação de serviços públicos que ajude a fixar alguns quadros. Dou um exemplo desta coabitação de atomização local e falta de interesse e vontade política central. O Museu do Douro aguarda por participações financeiras mais relevantes das autarquias do Douro e que o Governo reponha dois anos de comparticipações não pagas ao Museu. Quem se preocupa? Quem barafusta? Quem denuncia este desinteresse?

A nova infraestrutura do túnel talvez vá servir as emergências que Manuel Carvalho identifica como a esperança remota da região interior: o turismo, a economia do vinho no seu topo de protagonistas não na agonia dos pequenos produtores, a nova agricultura, a esperança de uma UTAD renovada e capaz de não olhar para o seu umbigo. Mas a sua existência não compensará a penalização do passado, por mais sorridentes que se apresentem os rostos nas selfies que abrilhantarão as recordações dos protagonistas.

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