terça-feira, 31 de maio de 2016

O FMI RETRATA-SE?




(Já que estamos com a mão na massa do neoliberalismo, vale a pena percorrer algumas manifestações contraditórias que é possível encontrar entre o pensamento que se vai fazendo pela instituição FMI e o seu posicionamento efetivo na gestão da economia mundial)

O FMI está a transformar-se, de modo intrigante, numa das instituições mais contraditórias que exercem a sua influência sobre a gestão macroeconómica mundial.

Ainda muito recentemente o FMI protagonizou uma novela sobre mais um estádio da crise financeira grega que não se recomenda aos mais suscetíveis. De facto, o FMI aparece aos olhos de um observador inocente como a instituição de mente mais lúcida ao insistir na necessidade de um perdão de dívida à economia grega sob pena de não poder responsabilizar-se pela sustentabilidade da dita dívida. Ora, uma observação mais atenta e profunda do problema mostra que a magnitude da dívida grega ao FMI é bem mais pequena do que a que tem por credores instituições europeias, como o BCE e o Mecanismo de Estabilidade Europeia. Além disso, a dívida do FMI tem estatuto de dívida sénior, o que significa que tem de ser paga na sua totalidade e em primeira linha. Para além disso, as instituições europeias já concederam, à Grécia um corte de dívida e reduções com algum significado das taxas de juro envolvidas, o que tornou as taxas de juro a pagar ao FMI francamente mais elevadas. Resta dizer que, pelo menos, reconheceu publicamente os seus erros de estimação dos multiplicadores da despesa pública à luz dos quais mediu inicialmente o impacto recessivo dos programas de austeridade.

A posição do FMI é por isso nesta matéria suspeita e contraditória. Andrew Watt (ver link aqui), no Social Europe, sublinha curiosamente que o FMI parece querer o modelo de matar os pais e seguidamente solicitar apoios como órfão, ao passo que a posição das instituições europeias parece simultaneamente intransigente e leviana, mas menos contraditória do que a do FMI. Diria que a instituição se comporta ao estilo Lagarde e está tudo dito.

Mas as contradições têm emergido a um outro nível. Há de facto um fosso estranho entre algum pensamento que se vai construindo no interior e/ou com o apoio da instituição e as tomadas de posição da instituição sobre as matérias a que o referido pensamento poderia reportar-se. E é nesta matéria que continuaremos com a mão na massa do neoliberalismo objeto do meu último post.

Jonathan D. Ostry tem-se destacado entre as equipas de economistas e investigadores do FMI que estudam a alteração das relações observadas entre a desigualdade e o crescimento económico. Na edição de junho do Finance&Development, uma revista de divulgação para o grande público da investigação económica realizada pela instituição, Ostry e a sua equipa avançam com um título provocador, “Neoliberalism: Oversold?”, qualquer coisa como querendo dizer que o neoliberalismo poderá estar a ser vendido a preço de saldo.

Cito para marcar o tom do artigo duas chamadas que graficamente o artigo traz à atenção do leitor: 

  • 1ª chamada: “Em vez de proporcionar crescimento, algumas políticas neoliberais têm aumentado a desigualdade, penalizando por essa via uma expansão duradoura.”

  • 2º chamada: “Os governos com maior margem de manobra fiscal fariam melhor vivendo com a dívida”.

Já sabíamos que o FMI tinha mudado substancialmente a sua posição quanto a apregoar os benefícios da livre circulação de capitais, pelo menos em períodos de instabilidade financeira, já que ela tende a intensificar e a propagar essa mesma instabilidade. Mas se estas duas chamadas vierem a transformar-se em posicionamento institucional com impacto no financiamento internacional, então o caso muda de figura. Ambas as chamadas têm um interesse indireto para a economia portuguesa, na medida em que podem influenciar decisivamente a situação macroeconómica dos países que são o nosso mercado de exportação. A consideração do tema da desigualdade nos programas de ajustamento é crucial para controlar os danos colaterais de tais programas, que tendem a transformar-se em danos centrais e inibidores de resultados da própria estratégia de ajustamento. Por sua vez, a distinção entre economias com maior ou menor margem de manobra fiscal (Portugal é seguramente uma economia com muito fraca margem de manobra nessa matéria) é também crucial para um desanuviamento económico europeu, agora que a inflação da zona euro permanece encurralada em território negativo, não deixando que as nuvens da deflação se dissipem (veja-se o Financial Times on line de hoje).

Sabemos que o tempo que medeia nas instituições como o FMI entre o aparecimento de novas ideias, teoricamente fundamentadas e com evidência sólida de suporte, a transformar-se em posicionamentos da instituição pode equivaler a um processo muito longo, frequentemente sem resultados nessa matéria. É aliás um tema fascinante, frequentemente invocado neste blogue. Mas pelo menos é sinal de que a instituição não é monolítica nos seus programas de investigação. Já é alguma coisa e a blogosfera económica é hoje um palco de disseminação de ideias minoritárias que muda a raiz do problema e o campo possível para a sua superação.

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