(Já que estamos
com a mão na massa do neoliberalismo, vale a pena percorrer algumas manifestações contraditórias que é
possível encontrar entre o pensamento que se vai fazendo pela instituição FMI e
o seu posicionamento efetivo na gestão da economia mundial)
O FMI está a transformar-se, de modo intrigante, numa das instituições mais
contraditórias que exercem a sua influência sobre a gestão macroeconómica
mundial.
Ainda muito recentemente o FMI protagonizou uma novela sobre mais um
estádio da crise financeira grega que não se recomenda aos mais suscetíveis. De
facto, o FMI aparece aos olhos de um observador inocente como a instituição de
mente mais lúcida ao insistir na necessidade de um perdão de dívida à economia
grega sob pena de não poder responsabilizar-se pela sustentabilidade da dita
dívida. Ora, uma observação mais atenta e profunda do problema mostra que a
magnitude da dívida grega ao FMI é bem mais pequena do que a que tem por
credores instituições europeias, como o BCE e o Mecanismo de Estabilidade
Europeia. Além disso, a dívida do FMI tem estatuto de dívida sénior, o que
significa que tem de ser paga na sua totalidade e em primeira linha. Para além
disso, as instituições europeias já concederam, à Grécia um corte de dívida e
reduções com algum significado das taxas de juro envolvidas, o que tornou as
taxas de juro a pagar ao FMI francamente mais elevadas. Resta dizer que, pelo
menos, reconheceu publicamente os seus erros de estimação dos multiplicadores
da despesa pública à luz dos quais mediu inicialmente o impacto recessivo dos
programas de austeridade.
A posição do FMI é por isso nesta matéria suspeita e contraditória. Andrew
Watt (ver link aqui), no Social Europe,
sublinha curiosamente que o FMI parece querer o modelo de matar os pais e
seguidamente solicitar apoios como órfão, ao passo que a posição das
instituições europeias parece simultaneamente intransigente e leviana, mas
menos contraditória do que a do FMI. Diria que a instituição se comporta ao
estilo Lagarde e está tudo dito.
Mas as contradições têm emergido a um outro nível. Há de facto um fosso
estranho entre algum pensamento que se vai construindo no interior e/ou com o
apoio da instituição e as tomadas de posição da instituição sobre as matérias a
que o referido pensamento poderia reportar-se. E é nesta matéria que
continuaremos com a mão na massa do neoliberalismo objeto do meu último post.
Jonathan D. Ostry tem-se destacado entre as equipas de economistas e
investigadores do FMI que estudam a alteração das relações observadas entre a
desigualdade e o crescimento económico. Na edição de junho do Finance&Development, uma revista de divulgação para o grande público da
investigação económica realizada pela instituição, Ostry e a sua equipa avançam
com um título provocador, “Neoliberalism: Oversold?”, qualquer
coisa como querendo dizer que o neoliberalismo poderá estar a ser vendido a
preço de saldo.
Cito para marcar o tom do artigo duas chamadas que graficamente o artigo
traz à atenção do leitor:
- 1ª chamada: “Em vez de proporcionar crescimento, algumas políticas neoliberais têm aumentado a desigualdade, penalizando por essa via uma expansão duradoura.”
- 2º chamada: “Os governos com maior margem de manobra fiscal fariam melhor vivendo com a dívida”.
Já sabíamos que o FMI tinha mudado substancialmente a sua posição quanto a
apregoar os benefícios da livre circulação de capitais, pelo menos em períodos
de instabilidade financeira, já que ela tende a intensificar e a propagar essa
mesma instabilidade. Mas se estas duas chamadas vierem a transformar-se em
posicionamento institucional com impacto no financiamento internacional, então
o caso muda de figura. Ambas as chamadas têm um interesse indireto para a
economia portuguesa, na medida em que podem influenciar decisivamente a
situação macroeconómica dos países que são o nosso mercado de exportação. A
consideração do tema da desigualdade nos programas de ajustamento é crucial
para controlar os danos colaterais de tais programas, que tendem a
transformar-se em danos centrais e inibidores de resultados da própria
estratégia de ajustamento. Por sua vez, a distinção entre economias com maior
ou menor margem de manobra fiscal (Portugal é seguramente uma economia com
muito fraca margem de manobra nessa matéria) é também crucial para um
desanuviamento económico europeu, agora que a inflação da zona euro permanece
encurralada em território negativo, não deixando que as nuvens da deflação se
dissipem (veja-se o Financial Times on line de hoje).
Sabemos que o tempo que medeia nas instituições como o FMI entre o
aparecimento de novas ideias, teoricamente fundamentadas e com evidência sólida
de suporte, a transformar-se em posicionamentos da instituição pode equivaler a
um processo muito longo, frequentemente sem resultados nessa matéria. É aliás
um tema fascinante, frequentemente invocado neste blogue. Mas pelo menos é
sinal de que a instituição não é monolítica nos seus programas de investigação.
Já é alguma coisa e a blogosfera económica é hoje um palco de disseminação de
ideias minoritárias que muda a raiz do problema e o campo possível para a sua
superação.
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