domingo, 22 de maio de 2016

DO BULLYING DE BERLIM

(Gianni Chiostri, http://www.lastampa.it)

(James Ferguson, http://www.ft.com)

A União Europeia e a Zona Euro não cessam nunca de nos municiarem com material e factos elucidativos das inconsistências dos seus projetos e das suas lideranças. De entre o muito que voltou a ser reavivado ao longo do último mês, a guerra aberta por Schäuble a Draghi atingiu os píncaros do mau gosto, e até da indecência. Sintetizo-a, começando por citar aquele em algumas das suas mais cirúrgicas acusações: “É um problema da nossa união monetária comum que tenhamos (...) um banco central independente – que conduz uma política monetária unificada para 19 países – a favorecer menos a Alemanha do que outros países”; ou também: “O BCE está a causar problemas extraordinários”; ou ainda: “Disse a Mario Draghi: ‘Orgulha-te. Podes atribuir a essa política [do BCE] 50% do score de um partido [o AfD, populista e eurocético]”; ou finalmente: “Há um crescente consenso de que a liquidez excessiva se tornou mais uma causa do que uma solução para o problema”. Perante ditos de tamanha gravidade (ou bestialidade?), Draghi não podia obviamente ficar-se e, embora sem abandonar a sua reconhecida postura de moderação, lá passou minimamente à ofensiva: “Nós obedecemos à lei, não aos políticos, porque somos independentes, como estabelecido na lei”; ou também: “Temos um mandato para prosseguir a estabilidade dos preços em toda a Zona Euro, não apenas na Alemanha”; ou ainda: “Há a tentação de concluir que (...) taxas muito baixas (...) são o problema (...), mas elas não são o problema, são o sintoma de um problema subjacente”; ou finalmente: “Com raras exceções, a política monetária foi a única política de apoio ao crescimento dos últimos quatro anos”.

Schäuble, sempre mais preocupado com as sondagens e o estado da opinião pública (não há dia que passe na Alemanha sem que os media denunciem a queda de rendimentos dos pequenos aforradores por razões associadas às baixas taxas de juro em curso – citem-se, p.e., “os 99 bancos que já não pagam qualquer juro” ou os 2450 euros que cada alemão terá deixado de obter desde 2010) do que com a essência das coisas, e sempre completamente focado nas suas próprias referenciação germânica e ambição pessoal, ainda quis voltar à carga (“O BCE é independente; todavia, a independência só existe dentro do quadro de um dado mandato legal”), mas as reações político-económicas mais qualificadas (quer as diretas e explícitas – como a do seu congénere francês, mostrando a inesperada preciosidade de uma França a lembrar a independência do BCE à Alemanha, a do presidente do Bundesbank, exprimindo-se de modo surpreendentemente crítico numa entrevista em que veio lembrar que “as pessoas não são apenas aforradores, são também assalariados, contribuintes e devedores, que lucram consequentemente com o baixo nível das taxas de juro, ou aquele editorial do “Financial Times” tendo por título Germany should keep its hands off the ECB – quer as de bastidores – como, diz-se, as discretas movimentações da própria chanceler Merkel) levaram-no a um pouco convencido recuo. Recuo que ainda mereceu a companhia de uma nova e excelente alfinetada por parte do italiano: “O próprio senhor Schäuble voltou atrás com as suas palavras – eu não tenho aqui o que ele disse exatamente, mas podem verificar –, dizendo que não tinha intenção de dizer o que disse ou que não disse o que tinha intenção de dizer, algo assim”.


Mas qual é, afinal, a dita essência das coisas? Para a situar devidamente, talvez nada melhor do que recorrermos aos pontos de vista publicados por dois dos mais respeitados cronistas económicos da atualidade, Martin Wolf e Wolfgang Münchau. Fá-lo-ei utilizando um recente escrito de cada um, ambos no “Financial Times”, em que este último chama a título “o elevado custo da cultura de poupança alemã” e aquele não é meigo nas palavras ao escolher um provocador “a Alemanha é o maior problema da Zona Euro”.

Podem então ler-se no texto assinado por Münchau as seguintes seis límpidas e admiráveis afirmações (seleção minha):
(i) “Neste momento, o maior problema para Mario Draghi não é a Grécia. É a Alemanha.”
(ii) “O persistente excedente de transações correntes da Alemanha é uma das principais causas.”
(iii) “Baixas taxas de juros e excedente de transações correntes da Alemanha são os gémeos tóxicos da economia da Zona Euro.”
(iv) “Berlim vê o excedente de transações correntes como um reflexo da superior competitividade da Alemanha”, visão que constitui “um desvio deliberado do verdadeiro problema” porque “se a Alemanha tivesse a sua própria moeda e uma taxa de câmbio flutuante, o desequilíbrio da balança corrente teria praticamente desaparecido” e porque “os desequilíbrios relevam na união monetária que temos, uma união sem sistemas de redistribuição e resseguro”, sendo que “não é por acaso que a Alemanha rejeita estes mecanismos de redistribuição” já que “é assim que maximiza o seu excedente da balança corrente [‘objetivo político implícito’].”
(v) “A Alemanha, talvez mais do que a Grécia, não está preparada para pertencer a uma união monetária.”
(vi) “Em teoria, há uma solução simples. Berlim poderia cortar impostos e aumentar as despesas de investimento. Tem muito espaço para tal. Depois de anos de austeridade, o multiplicador orçamental – o impacto de cada euro de despesa pública – é grande. Infelizmente, a regra de equilíbrio orçamental da Alemanha torna isso impossível. Principalmente o eleitorado e os seus representantes políticos não o querem. Eles querem amortizar a sua dívida. É uma má escolha, mas é uma escolha democrática. Significa, todavia, que enquanto a Alemanha permanecer na Zona Euro os desequilíbrios não irão ser corrigidos.”

Quanto ao texto de Wolf, a via adotada é outra, embora largamente compatível e complementar. Seguem-se igualmente meia-dúzia de pistas orientadoras, pertinentemente enquadradas pelo autor nos chamativos gráficos de suporte abaixo reproduzidos:
(i) A arrancar, uma referência à peculiaridade e relevância do pensamento macroeconómico alemão convencional, largamente associados ao facto de a Alemanha ser um credor – não sem logo enfatizar: “os interesses dos credores são importantes, mas são interesses parciais, não gerais”.
(ii) Depois, uma passagem pelas críticas às políticas do BCE, sobretudo enquanto encaradas como “uma grande ameaça à estabilidade”. Sublinhando que “[no ordoliberalismo], a macroeconomia ideal tem três elementos: um orçamento equilibrado em (quase) todos os momentos, estabilidade de preços (com uma preferência assimétrica pela deflação) e flexibilidade de preços”. Mas contrapondo: “É uma abordagem razoável para uma pequena economia aberta. É gerível num país maior, como a Alemanha, com setores industriais altamente competitivos. Mas não pode ser generalizada a uma economia continental, como a da Zona Euro. O que funciona na Alemanha não pode funcionar numa economia três vezes maior e muito mais fechada ao comércio externo.”
(iii) “As baixas taxas de juros fixadas pelo banco [BCE] não são o problema, mas inversamente ‘o sintoma’ de insuficiente investimento”. Acrescentando: “A história da economia alemã desde as suas reformas no mercado de trabalho do início dos anos 2000 demonstra que é muito improvável que as ‘reformas estruturais’ resolvam o problema. O facto macroeconómico mais importante sobre o país é que ele é incapaz de absorver internamente cerca de um terço de sua poupança doméstica, apesar das ultrabaixas taxas de juros.” E portanto: “Com as famílias em situação excedentária e o governo em equilíbrio, o que acabou obrigatoriamente por emergir foi um imenso excedente externo.”
(iv) “O que aconteceu (...) foi a conversão da Zona Euro numa Alemanha mais fraca”. E mais à frente: “A Zona Euro depende da disponibilidade de outros para se entregarem às despesas e aos financiamentos que ela agora evita”. E ainda: “O easing adotado desde 2012 está, pelo menos, a render frutos através de uma recuperação significativa, ainda que insuficiente”. E por fim: “Uma espiral deflacionária seria uma ameaça muito maior do que taxas de juros negativas”.
(v) “Acima de tudo, a Zona Euro fracassará se for gerida apenas em benefício dos credores. A política económica tem de ser equilibrada. A determinação do BCE em evitar uma deflação é uma parte importante desse objetivo. Conseguir uma procura mais equilibrada ao nível nacional é outro. Uma enorme deficiência da procura (em relação à oferta agregada) na maior economia da Zona Euro é altamente problemático. O ‘procedimento por défices excessivos’ da União Europeia deveria ser muito mais crítico quanto aos excedentes alemães.”
(vi) “As ideias e os interesses da Alemanha são de importância gigantesca para a Zona Euro. Mas não devem determinar tudo. Se os alemães se convencerem de que tal debilita fatalmente a legitimidade do projeto europeu, devem usar a sua opção de saída.” E a terminar: “Mas, enquanto continuar no Euro, o país deve também aceitar que o BCE tem um papel a desempenhar. Se o fizer, não vai necessariamente fazer com que a Zona Euro funcione bem. Mas será certamente uma contribuição vital para esse fim.”


O post já vai longo e suficientemente rico em conteúdo esclarecedor quanto à acima mencionada questão da “essência das coisas”. Dispenso-me, por isso, de quaisquer outras considerações que, podendo levar-nos um pouco mais além em determinados refinamentos e precisões, arriscariam redundâncias e desvios em relação ao foco que tínhamos preferencialmente em vista: o do inestimável contributo alemão para a cada vez mais irremediável falência em curso do projeto europeu.

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