segunda-feira, 23 de maio de 2016

DINÂMICAS CRUZADAS




(Reflexões sobre a quase que concretizada ascensão ao poder da extrema-direita austríaca, mitigadas por notícias provenientes de Malmӧ, terceira cidade sueca, onde a dinâmica decorrente da chegada de refugiados sírios dá sinais positivos de integração)

Pura ironia eleitoral, os resultados das eleições na Áustria estiveram dependentes dos votos por correio, com o Partido da Liberdade de Norbert Hofer inicialmente à frente com uma margem de 140.000 votos do partido dos Verdes. Os resultados finais acabaram por dar a vitória ao candidato desta última força política. De qualquer modo, projetando a quase que concretizada vitória da extrema-direita poderíamos ter assim uma perigosa deriva de conservadorismo extremo que envolveria a Áustria, a Hungria, a Polónia e a Eslováquia com quatro mensagens bem marcantes: nacionalismo, anti-imigração europeia, anti-islamismo, anti União Europeia (ver a crónica de Alex Barker no Brussels Briefing do Financial Times). Não é preciso ser um cérebro iluminado para imaginar o impacto que tal frente produziria no conservadorismo alemão latente. E temos assim que, perante um diretório europeu que se esmerou na defesa a todo o custo do seu projeto económico, se forma nas suas barbas um arco manifestamente antieuropeu que anuncia, sejamos claros, a lenta implosão do projeto europeu tal como os seus principais fundadores o tinham concebido.

A ascensão das quatro mensagens atrás assinaladas exige, claro está, uma explicação bem mais profunda do que o alcance deste post. Há várias pistas a seguir.

Primeiro, o confronto das expectativas anunciadas para o projeto europeu com a estagnação económica e ameaças deflacionárias que se abateram sobre a União sobretudo na sequência da Grande Recessão de 2007-2008. É de facto difícil justificar o aprofundamento da União Europeu com resultados tão pobres em termos de crescimento económico, sobretudo pelo que está aqui implícito de não consolidação por parte da Europa de uma posição face à globalização. Essa limitação é sobretudo relevante quando mais se percebe que ficar a meio de um percurso é sempre mau, principalmente porque o diretório europeu não pactou com os eleitores nacionais as sucessivas fases de aprofundamento do projeto. O “nem carne nem peixe” favorece o nacionalismo, sobretudo porque a integração não tem proporcionado resultados que se vejam.

Podem, entretanto, buscar-se razões mais profundas. Num artigo de opinião para o New York Times de hoje, “Letter from Austria: is Europe’s ‘Tolerant Society’ Backfiring?”(link aqui), William Egginton discute os termos em que o respeito pela tolerância social (religiosa, cultural ou de outra natureza) pode ser objeto de proteção legal, sempre sob a ideia, frequentemente esquecida, de que não pode haver tolerância com os que ameaçam os nossos próprios valores de tolerância e liberdade. Tal como o “serial killer” consegue por vezes vitórias importantes insinuando-se na cabeça dos seus perseguidores, também o islamismo radical pode conseguir vitórias relevantes obrigando implicitamente as sociedades ocidentais mais tolerantes a violar os seus próprios princípios. O artigo de Eddington é sugestivo pois contrapõe a ascensão da extrema-direita austríaca a uma notícia isolada de jornal na qual se anuncia que um (a) professor (a) processou o pai muçulmano de um aluno por se ter recusado a cumprimentá-la. O autor explora sobretudo o confronto com a situação americana, na qual não seria possível processar judicialmente o pai muçulmano à luz da Primeira Emenda. Fica no ar, discussão mais profunda seria exigida, a possibilidade de uma insistência excessiva na tolerância poder provocar ela própria novas formas de intolerância.

Em contraponto claro com esta onda, o Guardian publica uma crónica do seu jornalista residente Richard Orange, na qual se dá conta da dinâmica de animação urbana (gastronómica, mas não só) que os refugiados sírios vieram trazer à terceira cidade da Suécia: “Entre os residentes de Malmӧ, contam-se algumas das histórias de maior êxito das três décadas de imigração na cidade. Cerca de 43% dos 317.000 residentes têm um passado estrangeiro, com os 40.000 iraquianos e seus descendentes a representar o grupo mais importante. Em conjunto transformaram a cidade que no início dos anos 80 estava numa depressão profunda após o colapso da sua indústria de construção naval, que provocou que um em cada sete habitantes abandonasse a cidade fazendo a população descer para 230.000 habitantes. ‘Malmӧ nos anos 90 era um lugar deprimente: toda a gente era miserável’ recorda Christer Havung, cujo café, Bröd och Vänner, está localizado perto da zona agora florescente.”

A crónica de Orange termina com esta afirmação de um sírio que montou o seu restaurante na cidade: “Irão perceber que a população Síria é muito diferente de outras nacionalidades, porque gosta de trabalhar. Não gostamos de depender em tudo do governo”.

Na sua sabedoria, Sabah Akkou proprietária de um restaurante na zona agora florescente de Mӧllevång, talvez não saiba que estava a tocar num ponto chave da vida europeia.

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