(Então paga para isso!)
(Reflexões com
origens diversas, cá pelo país, mas também na blogosfera internacional, que apontam para um debate latente e não resolvido)
A querela dos colégios privados com contratos de associação com o Estado, que
envolve segundo os números a circular apenas 3% da totalidade dos colégios
privados existentes, tem-se misturado com questões bem mais amplas e de mais
largo significado para um debate aberto sobre as relações entre a esfera pública
e a privada. A questão que parece resumir-se a uma interpretação jurídica de
contratos existentes (e admito que o governo até possa não ter razão na interpretação
que perfilha) tendeu a ser ardilosamente confundida com os princípios da liberdade
de escolha. O confronto que se perfila entre por um lado a CGTP e por outro os proprietários
e profissionais com interesses económicos e de emprego nos colégios privados
corre o risco de não representar fielmente as questões que estão efetivamente
em jogo no ardil em que o governo se deixou manietar. Este fim-de-semana Teresa
de Sousa escreveu, como sempre, um excelente artigo sobre o tema que punha os
pontos nos iii, e nos iii mais pertinentes. Uma coisa de facto é a liberdade de
escolha que cabe aos pais de optar por colocar a educação dos seus filhos nas mãos
do sistema público ou de escolas privadas e de estar disposto a pagar por essas
opções. Outra coisa bem diferente é a necessidade de proteger a Escola Pública,
sim digo bem, de proteger, que tanto deve trabalhar com os públicos mais difíceis
e disfuncionais (e que milagres algumas escolas públicas conseguem operar) como
com os mais afortunados em matéria de situação familiar e que frequentemente são
obrigadas a funcionar em condições a que uma oferta privada de educação
certamente se recusaria.
A Cristas que rezava pela chegada da chuva aos campos portugueses teve o
desplante de afirmar que, em caso de coexistência de proximidade entre uma escola
pública que funcionasse mal e uma privada que funcionasse bem, primeira deveria
fechar e a segunda continuar com a sua política de qualidade. A isto chama-se
um desplante e uma grande lata.
Muito gostaria de tomar conhecimento de quais foram as condições concretas
que conduziram à legislação dos contratos de associação e ainda mais as que estiveram
subjacentes à celebração dos tais contratos sobre os quais existem agora os
conflitos de interpretação. Não me admiraria que por essas entrelinhas tivessem
passado interesses obscuros e ocultos, do tipo criar uma preexistência e depois
é difícil removê-la. O PSD está cheio dessas personagens e não desdenharia que
algum do PS bloco central estivesse também representado. É tão gratificante fazer
um favorzinho aos amigos. Algo de menos grandioso do que as famigeradas
parcerias público-privadas, em que o Estado garante a gloriosos grupos empreendedores
taxas de rendibilidade que nunca conseguiriam em mercados efetivamente abertos.
Mas mesmo assim suficientemente estabilizador para permitir os primeiros
investimentos e cavar a diferença de condições para o público e assim criar uma
preexistência, ao abrigo de uma pretensa supletividade das dificuldades do Estado
em cumprir o seu papel na oferta pública de educação.
O país está assim cheio de liberais e neoliberais de fachada que usam em
tempo certo o Estado para gerar a oportunidade certa para se instalarem, cheirando
por essa via o negócio da educação, à partida com mercado garantido.
Mais tarde ou mais cedo, o debate terá de ser feito com profundidade e ser
devolvido ao eleitorado. É também uma questão de tempo que a questão se estenda
à saúde, onde a supletividade do público é ainda mais marcante do ponto de
vista da sua comunicação pública. E onde a ADSE funciona como o grande elemento
de sobrevivência de grupos hospitalares privados que de outro modo sucumbiriam.
Por simples coincidência, ou talvez não (quem sabe?), o debate latente em
Portugal coexiste com um debate bem mais interessante na blogosfera internacional
sobre a existência ou não de um pensamento global e estruturado (o historiador Philip
Mirowski designou-o de ‘Neoliberal
Thought Collective’) que possa designar-se de neoliberalismo. E sobretudo
sobre a questão de saber se esse pensamento estruturado, existindo, tem
autonomia face a correntes de pensamento económico, largamente representados no
modo como macroeconomicamente a economia mundial e a europeia em particular têm
sido geridas nos últimos tempos. A austeridade representou, em muitos países,
com o Reino Unido à cabeça, não uma via imperiosa de saneamento de contas públicas,
mas antes uma tentativa de através do poder de Estado reconfigurá-lo à luz dos
princípios do Estado mínimo e abrindo descaradamente o caminho à iniciativa privada.
Em Portugal, os jovens ideólogos PSD perceberam que o ajustamento da TROIKA
lhes oferecia de mão beijada a oportunidade para, sem escrutínio democrático e
sem o ónus de convencer democraticamente as populações das vantagens do não Estado
ou de Estado pequeno, reconfigurar a sociedade à luz dos princípios que professavam.
Tiveram entradas de leão e saídas de sendeiro (aliás como JJ e BC para meu
gosto futebolístico), mas mesmo assim fizeram danos profundos em matéria de
privatizações, veja-se o desplante da privatização da rede elétrica nacional.
A hipocrisia dos neoliberais nesta matéria é conhecida. Os que defendem uma
melhor intervenção do Estado (que não se confunde necessariamente com mais
Estado) são acusados de procurarem iluminadamente substituir-se à capacidade de
gestão informacional do mercado e às razões e preferências individuais. Mas os
neoliberais, eles próprios, pressupõem que as teses do não Estado podem ser
aceites em democracia sem qualquer manipulação democrática ou de poder administrativo.
Mas quando têm acesso ao poder rapidamente aderem à ideia de que o poder do Estado
deve ser utilizado sem hesitação para configurar o que o escrutínio democrático
tornaria impossível, mais lento e mais custoso.
A direita Paf teve um conjunto de ideólogos deste tipo. Mas rapidamente se
cruzaram nas esferas de influência de ambos os partidos com os que querem usar o
Estado apenas para criar as condições de um negociozinho mais lucrativo, se
possível com o Estado a pingar uma parcela relevante de “cash-flow”, pois o mundo não está para incertezas. Por outras
palavras, os Maçães e Lombas rapidamente tiveram que se haver com os Catrogas
deste mundo. E de libertários verdadeiros de direita, gente que abomina o Estado
pela sua introsão e gigantismo, está a passerelle vazia, não os há, ou estão
remetidos ao mais puro academismo inconsequente, ou estão sem qualquer expressão
política.
Liberais de fachada há muitos, seu palerma, como diria o Vasco Santana. Concedo
que com este panorama como adversário, falte estímulo à esquerda para reconstituir
um modelo de Estado para o século XXI e para os novos rumos da globalização. Enquanto
isso, ficam alguns elementos para esse debate, que glosei em parte neste post, que
me chegaram por via do post de Simon Wren-Lewis (ver link aqui) que tem por
foco os trabalhos de Philip Mikovski (ver links aqui e aqui).
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