Foco-me hoje no Chile, provavelmente o país mais positivamente referenciado da Região ao longo das últimas duas décadas – Moisés Naim invocou-o recentemente como “uma sociedade acostumada desde há anos a um lugar aprazível nos rankings que medem desenvolvimento”. Recordem-se os grandes marcos: o golpe militar de 11 de Setembro de 1973, que derrubou o governo socialista eleito de Salvador Allende e inaugurou a sangrenta ditadura do general Augusto Pinochet (aqui ilustrado no International Herald Tribune por Chappatte ao tempo da sua prisão em 1998, Londres), e o “não” saído do plebiscito de 1988, abrindo espaço às eleições de 1989 e a um regresso (ainda que relativamente “controlado”) da democracia.
As vozes do “mainstream” invocam frequentemente um papel saliente para a política económica seguida pela ditadura (“política de desarrollo económico” comummente conhecida por “El Ladrillo”), a qual se consubstanciou, como é sabido, numa das primeiras experiências de terreno dos chamados “Chicago boys” ou, se quisermos, no neoliberalismo em ação. Uns (mais moderados) referem o seu contributo para a estabilização do país, outros (mais triunfalistas) situam-na no centro do que designaram por “milagre chileno”. O certo é que, enquanto estes omitem o período mais “puro e duro” que culminou na crise de início dos anos 80 (queda de 14% do PIB em 1982 e falências generalizadas no sistema bancário), aqueles desvalorizam as incidências no plano social da impiedosa “revolução capitalista” que foi operada. Não obstante, parece inquestionável a consolidação de um legado de reformas significativas (restabelecimento dos equilíbrios macroeconómicos, abertura da economia ao exterior, diminuição do intervencionismo público e privatizações), sobretudo após a chegada do mais pragmático e heterodoxo ministro de “Hacienda” Hernán Buchi (1985-89).
Também os anos subsequentes à normalização democrática foram marcados pelo sucesso económico (crescimento médio anual de 7% entre 1990 e o advento da crise asiática em meados de 1997) – foi a fase do “jaguar latino-americano” em que, como alguém disse, “a abertura política gerou uma relação virtuosa com a abertura económica”. Mas a parte mais importante da receita então encontrada terá estado na “Concertación de Partidos por la Democracia”, plataforma de unidade inter-partidária sucessora da “Coalición de Partidos por el No” (constituída em meados dos anos 80) e grande protagonista de um processo de transição para a democracia que se revelou capaz de lograr conter, através do compromisso e do diálogo, reivindicações e aspirações longamente acumuladas em contexto repressivo.
Também os anos subsequentes à normalização democrática foram marcados pelo sucesso económico (crescimento médio anual de 7% entre 1990 e o advento da crise asiática em meados de 1997) – foi a fase do “jaguar latino-americano” em que, como alguém disse, “a abertura política gerou uma relação virtuosa com a abertura económica”. Mas a parte mais importante da receita então encontrada terá estado na “Concertación de Partidos por la Democracia”, plataforma de unidade inter-partidária sucessora da “Coalición de Partidos por el No” (constituída em meados dos anos 80) e grande protagonista de um processo de transição para a democracia que se revelou capaz de lograr conter, através do compromisso e do diálogo, reivindicações e aspirações longamente acumuladas em contexto repressivo.
A “Concertación” venceu quatro eleições presidenciais consecutivas, começando em Patricio Aylwin, um democrata-cristão que apoiara o golpe de 1973, passando pela continuidade de Eduardo Frei, evoluindo para um mais carismático Ricardo Lagos e culminando em Michelle
Bachelet, aquela que se disse dos cinco pecados capitais: “sou mulher, socialista, vítima da ditadura, separada e agnóstica” (aqui caricaturada pelo argentino Bob Row). Só que, como sempre ocorre nestas situações, o tempo encarrega-se de ir deixando mazelas institucionais e pessoais nas várias hostes, o que as vitórias e o exercício do poder foram circunscrevendo e conseguindo dissimular até ao extremar das contradições verificado em 2009 e à eleição do candidato de direita Sebastián Piñera.
Voltando à economia e ao social: erros de percurso (política monetária e cambial, p.e.), convicções de imunidade (um Chile “forte e sólido” não poderia ser substancialmente afetado por choques exógenos, p.e.) e inadaptações estruturais (uma “segunda fase exportadora” não conseguiu afirmar-se como uma estratégia nacional) conduziram o país a um “dinamismo declinante” ou a uma “promessa incumprida de desenvolvimento”. Também se poderá dizer, de outro modo mas com alguma verdade, que o país é agora vítima do seu próprio sucesso: os resultados do combate à pobreza (45% da população em 1987 e 14% atualmente) não só não atingiram as desigualdades (os 10% mais ricos têm rendimentos 27 vezes superiores aos 10% mais pobres) como levaram ao surgimento de uma agenda de classe média por cumprir e dos correspondentes níveis de deceção (sondagens revelando a maior diminuição do Continente em termos de perceção do progresso pelos cidadãos e a maior queda quanto à satisfação com o funcionamento da democracia e apoio ao modelo económico vigente).
O descontentamento social tem expressão política direta na manifestação de apenas 23% de aprovação a um Presidente da República que lograra chegar aos 82% há um ano, aquando do espetacular resgate dos mineiros de Atacama. Mais inorgânica, a expressão de rua mais visível
esteve nos prolongados protestos estudantis e de jovens “indignados” do ano passado. A liderança de Camila Vallejo (ver foto), 23 anos, estudante de Geografia e militante comunista, tornou-a popular (é apontada como a quarta figura política mais valorizada pela população) e responsabilizou-a para além do imaginável – “Estou cansada física e mentalmente. Sinto uma carga muito grande. As pessoas querem que tenha resposta para tudo e têm a expectativa de que eu só vou mudar o Chile”, declarou há dias.
Assim parece emergir um Chile à procura de algo, de mais seguramente mas de diverso igualmente. E foi marcado por este registo que me deparei com a boa surpresa de reencontrar a palavra de um contemporâneo “regulacionista” de Paris (1981/83) – o ex-ministro da Economia
de Aylwin e ex-senador durante dezoito anos Carlos Ominami. A sua história de vida é, como refere a abrir o livro recém-publicado (“Secretos de la Concertación – Recuerdos para el futuro”), a de “um sobrevivente”. Mas integra também uma componente pessoal de enorme riqueza: o casamento com Manuela Gumucio, mulher de Miguel Enríquez (líder do MIR morto em combate em 1974) e a adoção do seu filho Marco Enríquez-Ominami. Como, ainda, uma experiência política de 25 anos de militância num Partido Socialista a que renuncia desiludido em 2009, apoiando a candidatura renovadora de Marco (cerca de 20% dos votos) e vindo entretanto a pugnar por um novo progressismo e por um reajustamento partidário (fundação do PRO).
de Aylwin e ex-senador durante dezoito anos Carlos Ominami. A sua história de vida é, como refere a abrir o livro recém-publicado (“Secretos de la Concertación – Recuerdos para el futuro”), a de “um sobrevivente”. Mas integra também uma componente pessoal de enorme riqueza: o casamento com Manuela Gumucio, mulher de Miguel Enríquez (líder do MIR morto em combate em 1974) e a adoção do seu filho Marco Enríquez-Ominami. Como, ainda, uma experiência política de 25 anos de militância num Partido Socialista a que renuncia desiludido em 2009, apoiando a candidatura renovadora de Marco (cerca de 20% dos votos) e vindo entretanto a pugnar por um novo progressismo e por um reajustamento partidário (fundação do PRO).
A despeito das cambiantes nacionais próprias, as réplicas desta problemática político-partidária em várias outras áreas geográficas (incluindo as mais próximas) são apenas uma razão extra para tornar altamente recomendável a leitura do testemunho de Ominami…
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