“Vai acesa a discussão em torno do restauro de uma obra inacabada de Leonardo da Vinci que integra o acervo do Museu do Louvre “A Virgem e o Menino com Santa Ana” (c. 1508). Nos dois últimos anos têm vindo a ser removidas as camadas superficiais de verniz sobre o quadro para retocar alguns danos na pintura. Mas alguns técnicos discordam sobre quanto deve ser removido desse verniz e dizem ser agressivo demais o processo utilizado, que ameaçaria o efeito "sfumato", técnica de pincelada de Leonardo.
Foi criada uma comissão científica que reuniu uma constelação de peritos internacionais, especialistas em Leonardo da Vinci, em conservação e restauro, conservadores dos museus mais importantes do mundo. Os quinhentos anos da pintura e a popularidade do seu criador e artífice assim o exigiam.
E eu, neste pequeno texto, não me atrevo a acrescentar nada a essa discussão, a não ser deambular por algumas sugestões que o tema me suscitou.
Parece inevitável que muita erudição reunida, alguma disputa de protagonismo e uma opinião pública desperta pelo tema reúna as condições para a geração de acaloradas discussões em torno do brilho, da intensidade e do contraste das cores, dos que defendem intervenções minimalistas e os que admitem a utilização de métodos intrusivos quando se justifique. Acusações de irresponsabilidade, de políticas radicais de conservação e restauro, de limites ultrapassados devido a excessos nos métodos invasivos usados nos restauros contemporâneos, demissões dos mais conceituados especialistas. A bem dizer, nada muito diferente do que se passa noutras áreas disciplinares: Quantos vaticínios de doutos economistas, que divergiam - cada cabeça sua sentença – com a mesma convicção, incompreensível para o vulgo, na justificação da crise e da incapacidade para a antecipar e quantas teorias se formularam para as ultrapassar?
A nossa periferia relativamente a estas catedrais em que as obras-primas da arte se acotovelam não nos dispensa de seguir estes processos com atenção.
No artigo do Público “O restauro de Leonardo é polémica garantida?” de há uma semana, duas afirmações me chamaram a atenção:
Uma colocada por uma especialista portuguesa, Mercês Lorena, técnica de restauro do Instituto dos Museus e da Conservação que restaurou, por exemplo, as belíssimas pinturas flamengas do políptico da Vida da Virgem, do Museu de Évora; qual é o objetivo do restauro?
E o objetivo da intervenção, segundo o conservador-chefe da pintura do Museu do Louvre, Vincent Pomarède, que afirma raras vezes um restauro ter sido tão preparado e discutido e que havia pormenores da pintura, em particular no vestido e no rosto de Maria e de Santa Ana que se poderiam perder para sempre.
Mas a urgência de concluí-la prende-se antes com a necessidade de o restauro estar concluído a tempo da exposição de Março em que será a principal atração, sugere Michael Daley, diretor do ArtWatch UK. A importância que estes chef d’oeuvre assumem na promoção de um evento cultural é hoje determinante nas estratégias globais de marketing de um museu com a escala de uma mega instituição cultural. As peregrinações dos tempos modernos são feitas aos novos templos, às Mecas da cultura. O turismo, na sua versão cultural, veio fomentar a ligação da cultura ao lazer, de tal modo que as fronteiras entre cultura e lazer nem sempre são fáceis de fixar.
É sabido que o turista urbano-cultural é um recurso fundamental de que as cidades dependem em grande medida e que se esforçam por tentar captar já que deles se espera que alimentem a economia e a reputação do lugar visitado.
Como reflete o antropólogo Manuel Delgado, professor da Universidade de Barcelona e investigador do Instituto Catalão de Antropologia, os turistas vêm ver “o que há para ver”, esses pontos dos guias turísticos marcados como saturados de poder evocador e de valores simbólicos, que não podem de forma alguma ser subestimados e que justificam em torno de si todos os benefícios e melhorias. Por outro lado, o turista não espera na realidade nada de novo, nada que não seja demonstrar-se a si próprio e a quem mostre os testemunhos da sua viagem, que na realidade existe tudo o que antes lhe ensinaram os filmes, as reportagens televisivas, as revistas de viagens os livros ilustrados, os prospetos de promoção.
Noutro passo do artigo do Público, cita-se novamente Michael Daley. “O tempo passa por nós e pelas obras. O tempo faz parte delas. Não acredito que se deva tentar escondê-lo ou fingir que ele não passou. Porque será que há tantos restauradores e diretores de museus a fazê-lo?”
Fui buscar O tempo, esse grande escultor de Marguerite Yourcenar:
“No dia em que uma estátua é acabada, começa, de certo modo, a sua vida. (…) os restauros sábios ou desajeitados por que passaram, bem ou mal, as sucessivas camadas, verdadeiras ou falsas, que nelas se foram sobrepondo, tudo, até a atmosfera dos próprios museus onde hoje se encontram encerradas, marca o seu corpo de metal ou pedra para todo o sempre.
Algumas destas modificações são sublimes. À beleza como a concebeu um cérebro humano, uma época, uma forma particular de sociedade, elas juntam a beleza involuntária que lhes vem dos acidentes da História e dos efeitos naturais do tempo. Estátuas tão bem quebradas que de cada fragmento nasce uma obra nova, perfeita pela própria segmentação: um pé descalço inesquecivelmente pousado sobre uma laje, uma mão pura, um joelho dobrado contendo em si toda a velocidade da corrida, um torso que nenhum rosto nos impede de amar, um seio ou um sexo em que reconhecemos melhor que nunca a forma de flor ou de fruto, um perfil onde a beleza subsiste numa total ausência de história humana ou divina (…)”
Com tanta discordância, o Louvre fez saber que o quadro será novamente examinado por um grupo de especialistas já em Janeiro.”
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