domingo, 29 de janeiro de 2012

COCKTAIL (ESTIMULANTE) DE FIM DE SEMANA



O post de hoje reflete sobre um conjunto de estímulos noticiosos que foram chegando ao longo do fim de semana, aparentemente sem uma coerência visível entre si, mas que podem ser lidos na perspetiva do fio condutor que tem atravessado este espaço de reflexão. Destaco alguns elementos dessa amálgama de estímulos noticiosos para que possa compreender-se a ambição de estabelecer um nexo entre eles: (i) Trapalhadas em torno da execução orçamental com alertas de derrapagem de despesa em alguns ministérios e indícios de sobreorçamentação de despesa em torno do colossal equívoco sobre o desvio colossal; (ii) incomodidade expressa por ramos da família social-democrata sobre o modo como está a ser aplicada a terapia de austeridade, focadas na personalidade de Vítor Gaspar; (iii) entrevista de João Lobo Antunes à SIC Notícias (Portugal 2012); (iv) entrevista de Manuel Sobrinho Simões ao Público de hoje; (v) entrevista de Maria Fátima Bonifácio a Anabela Ribeiro na Pública de hoje. Intrigante, não é?
Comecemos pelas primeiras fissuras, visíveis entenda-se, na família social-democrata quanto à (in) consistência e in (equidade) da estratégia orçamental em curso, leia-se da aplicação em concreto dos ditames do resgate financeiro.
Temos aqui falado de período de nojo relativamente à família socialista, sobretudo do ponto de vista do confronto e catarse com os desvarios da governação anterior, que a tem colocado em situação global de inação, salvo pequenos fogachos, embora erráticos e sem uma linha de rumo. Mas há também um período de nojo no interior da família social-democrata, o esperar para ver o que dá a atual tendência de governação, sobretudo do ponto de vista do seu embate com a dimensão corporativa dos interesses. E o que parece é que este período de nojo está também a chegar ao fim. É discutível se o que está a emergir resulta das figuras chegadas ao chamado cavaquismo, como a notícia do Público de hoje sugere. A eleição de Passos Coelho não apagou definitivamente a conflitualidade doutrinária no interior da família social-democrata. Tal qual num rescaldo de incêndio, as raízes das árvores ardidas permanecem durante algum tempo incandescentes, também aqui as diferenças não desapareceram. Até porque as tendências alternativas à atual governação, apesar de heterogéneas, acolhem gente de convicções, bem mais arreigadas a meu ver do que a vaga liberal que suporta a tendência no poder. Em mandato não renovável, o que é que moverá Cavaco Silva a interferir nas bases doutrinárias a não ser pela defesa de convicções doutrinárias, que poderíamos situar numa social-democracia económica.
É neste limbo de expectativas que devemos situar a trapalhada da execução orçamental. O que parece cada vez mais evidente é que o Ministério das Finanças, apesar do seu alinhamento doutrinário, não controla, tal como o Ministro das Finanças anterior, a máquina da despesa. E isso deve-se a uma combinatória explosiva: debilidade dos sistemas de informação e reporte à gestão da execução orçamental e complexidade insondável introduzida pelo desvario do centralismo que se reproduz a si próprio. A meu ver, o Ministério das Finanças joga a sua última cartada na mobilização dos instrumentos de financiamento do QREN para introduzir alguma componente de apoio ao crescimento. Estou curioso para ver como funciona nesse contexto a articulação entre o MF e o da Economia. A consagração de uma task-force externa, com participação plena de personalidades fortemente articuladas com a Comissão Europeia inaugura uma prática totalmente nova de geração de credibilidade para se impor a todo o Executivo. Veremos o resultado e sobretudo o modo como o Ministério da Economia acolherá um processo do qual, tudo indica, está afastado.
No seio de toda esta trapalhada, as entrevistas de João Lobo Antunes (JLA) e de Manuel Sobrinho Simões (MSS) acabam por ser um bálsamo. Curiosamente, mas só na aparência, a palavra racionamento volta a ser proferida por ambos os entrevistados. Mas aqui há uma diferença abissal: uma coisa é o racionamento na saúde ser discutido e avaliado por personalidades com a dimensão humanista, profundamente ética e elevada consciência social como JLA e MSS; outra coisa radicalmente diferente é ele ser acionado por um burocrata de serviço ou por um qualquer apparatchik partidário que tem o seu momento de glória no poder dos cortes de despesa. Aliás, uma nova família de apparatchiks vai emergir: por via dos cortes de despesa e não pela bondade dos gastos. O plano das novas escolhas públicas que tanto tem marcado a minha reflexão neste blogue tem aqui uma clara explicitação. Os exemplos de racionamento mencionados pelos dois cientistas nas respetivas entrevistas são bem explícitos do peso da sua dimensão ética e humanista. Tenham em conta, só a título de exemplo, a resposta de MSS a uma pergunta do jornalista sobre a controversa afirmação na SIC de Manuela Ferreira Leite que invocou o pagamento da hemodiálise pelos doentes com mais de 70 anos: “É um disparate. Não existe em nenhuma parte do mundo. Vamos ter que decidir outras coisas, como por exemplo quando interrompemos tratamentos. A nossa civilização acha que a morte é opcional e não é. Se calhar é mesmo melhor morrer em paz, com a família, não podemos continuar a prolongar tratamentos indefinidamente, fica caríssimo”. Imaginem estes temas sem escrutínio democrático e ético nas mãos de apparatchicks partidários de última geração ou de gestores sem capacidade de diálogo com os médicos, defensores em última instância dos direitos dos doentes. Um terror potencial.
Na entrevista de JLA a António José Teixeira (SIC Notícias), há uma passagem deliciosa quando o cientista e neurocirurgião é interpelado sobre as divergências entre os economistas acerca da política de austeridade (mais propriamente na designação que este blogue lhe tem dado o mito da austeridade expansionista). Com o rigor que o caracteriza de não falar sobre mundos que não domina, JLA expressa porém a sua incomodidade de não compreender como é possível essa divergência em função de um tema concreto. O que está aqui em causa é que não estamos a falar de ciências similares, mas de campos muito diferentes de experimentação e prova. Mas certamente todos concordamos que submeter um significativo conjunto de grupos sociais a uma experiência laboratorial ao vivo sobre os pretensos benefícios da austeridade expansionista seria nas ciências da vida objeto de uma profunda rejeição. Ao que parece também nas dimensões éticas das duas ciências há profundas diferenças.
Finalmente, a entrevista de Maria de Fátima Bonifácio (MFB) a Anabela Mota Ribeiro constitui mais um precioso elemento documental de história portuguesa contemporânea. A entrevista reúne elementos de história de vida muito sugestivos para contextualizar a transferência de uma prática radical de esquerda a um individualismo não utópico como MFB se autointitula. É claro que uma centelha social permanece mas algo abatida: “Não gostaria de sair à rua, como já me aconteceu em Londres, nos princípios da senhora Thatcher e ver hordas de pessoas a dormir em cartões no meio da rua. Não pode haver fome, as pessoas têm de ter o mínimo de condições materiais de vida, um tecto”. Tudo indica que haverá matéria para se incomodar de novo. O desencanto de gente desta geração que navegou na extrema esquerda radical é algo que me intriga. E se associarmos a esta história de vida o casamento de MFB com João Martins Pereira então abre-se um novo documento de história contemporânea.



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