terça-feira, 26 de agosto de 2014

POLARIZAÇÃO EM JACKSON HOLE



Uma breve digressão sobre os ecos na blogosfera do debate económico travado nas sessões do Simpósio de Banqueiros no fim do mundo de Jackson Hole excedeu claramente as minhas expectativas. E não apenas pela forte repercussão nos meios de comunicação social, de imprensa económica e não só, suscitada pela intervenção de Draghi, após a intervenção de Janet Yellen no mesmo Simpósio.
O título do post de hoje não pretende reproduzir a eventual polarização de opiniões que se terá formado no ambiente do Simpósio. O tema polarização tem nos últimos tempos um significado claro na economia do trabalho e tem origem no já conhecido e aqui comentado fenómeno da polarização de empregos nas principais economias desenvolvidas. O topo (empregos de altas qualificações, intensivos em competências abstratas) e a base (empregos de baixas qualificações e intensivos em competências manuais) da estrutura dos empregos tenderam nos últimos tempos a ganhar importância face aos grupos intermédios dessa estrutura (empregos de qualificações médias e intensivos em competências de rotina, mais facilmente substituíveis por computadores). Curiosamente, o reforço simultâneo do topo e da base não é acompanhado por comportamento similar dos salários: o topo tende a desenvolver padrões salariais crescentes, ao passo que a base tende a afundar-se em baixos salários.
A intervenção de David Autor em Jackson Hole teve um grande impacto sobre esta matéria. Autor não cunhou a designação, mas é indiscutivelmente um dos investigadores mais consistentes sobre o tema. A sua intervenção mostrou essa consistência, contendo uma dimensão adicional que me apraz registar, por razões que procurarei hoje evidenciar.
O paper apresentado por Autor tem essencialmente duas partes: uma primeira em que desenvolve essencialmente os argumentos principais da tese da polarização (largamente tributária de artigos anteriores que lhe granjearam a notoriedade no tema); uma segunda em que explora aspetos ainda não suficientemente desenvolvidos em artigos anteriores.
Os argumentos fundamentais em que assenta a tese da polarização incidem sobretudo nas consequências que o progresso técnico (essencialmente determinado pela computarização da economia) tende a provocar em diferentes tipos de empregos competências. As chamadas competências abstratas e criativas, associadas às mais elevadas qualificações, tendem a beneficiar com a complementaridade com a computarização nas suas diferentes formas. As competências manuais associadas a baixas qualificações têm a particularidade de não serem simuláveis e substituíveis pela computarização, já que pressupõem competências in situ, não externalizáveis por outsourcing internacional, embora isso não signifique progressão dos salários dada a elevadíssima oferta de trabalhadores desqualificados. Para além disso, trata-se de um último reduto de competências de média qualificação, as quais, perdido o emprego e face à probabilidade de permanecerem no desemprego, optam por concorrer a empregos desqualificados para as suas competências. Finalmente, as competências perdedoras reúnem sobretudo os empregos que fazem apelo a tarefas de rotina, facilmente programáveis, e tendem por isso a ser destruídas pelo avanço da computarização na economia. São também em grande medida externalizáveis por outsourcing internacional. Veja-se o caso das contabilidades e outras operações administrativas.
As teses de Autor readquirem visibilidade e importância sobretudo numa época em que as grandes ameaças ao emprego provocadas pela tecnologia da automação e robotização voltam a animar as conceções catastrofistas do progresso tecnológico. O investigador americano esforça-se por demonstrar que essas perspetivas sobrevalorizam o potencial destruidor de emprego por parte da computarização, salientando entre outros aspetos a elevada complementaridade que as tecnologias de informação e comunicação e os computadores em particular mantêm com a geração de novos empregos.
Mas, como anteriormente referi, o artigo de Autor em Jackson Hole dois desenvolvimentos sugestivos.
O primeiro é de natureza empírica e está centrado na evidência, pelo menos recolhida para a economia americana, de que após 2000 se assistiu a uma desaceleração do crescimento dos empregos baseados em competências abstratas e criativas, com o emprego neste grupo a não acompanhar a evolução da oferta de trabalhadores com formação superior. No primeiro trimestre de 2014, o investimento empresarial privado em equipamento de processamento de informação e em software desceu ao seu mais baixo nível desde a revolução do dot.com (3,5% do PIB). A explicação desta evidência abre um amplo debate sobre esta matéria que vai desde a hipótese do investimento neste tipo de tecnologias e a evolução das competências exigidas pelo paradigma da computarização se potenciarem mutuamente até à tese de Robert Gordon de que o progresso técnico das TIC esgotou o seu potencial de crescimento. O debate está aberto e a experiência mostra que os economistas são, regra geral, surpreendidos pela evolução tecnológica, confirmando a indeterminação do fenómeno inovação. É célebre a história do modo como o CEO da IBM na altura em que os computadores davam os seus primeiros passos desvalorizou o impacto futuro da descoberta. O mundo da tecnologia é mais o campo de homens como Steve Jobs do que dos economistas. Estes têm-se destacado em compreender e explicar a inovação a posteriori, não a prevê-la ou antecipá-la.
O segundo aspeto de novidade do paper de Autor tem a sua génese na invocação de um importante contributo de Karl Polanyi para a economia da inovação: “sabemos mais do que sabemos ou podemos exprimir”. Ou seja, Autor regressa a um dos meus fascínios, o conhecimento tácito. É óbvio que o conhecimento tácito que não pode ser comunicado não pode também ser programável e isso explica que as competências que implicam bom senso, domínio da situação e do contexto não sejam substituíveis por computadores. O contributo de Autor consiste em analisar desenvolvimentos recentes no conhecimento da tecnologia e discutir em que termos essa impossibilidade pode ser parcialmente atenuada pelo progresso tecnológico. Ou seja, em que termos a computarização de tarefas para as quais não se conhecem as regras é possível.
Autor estuda em pormenor desenvolvimentos tecnológicos que podem contornar ou minimizar o paradoxo de Polanyi, um dos quais é o desenvolvimento de máquinas aprendentes, baseadas em poderosos sistemas de análise de dados de experiência. O potencial dinâmico deste desenvolvimento tecnológico é substancial, podendo gerar novas necessidades e complementos de competências abstratas. Autor sustenta que a polarização não acontecerá para todo o sempre. E dá o exemplo de empregos de qualificações intermédias e remunerações não propriamente baixas, como acontece com o universo de profissionais e técnicos de saúde, que não exigem formação superior completa e está a ver bem o potencial, em meu entender.
O catastrofismo quanto ao efeito destruidor do emprego pela tecnologia tem sido uma presença regular ao longo de diferentes momentos da história da tecnologia e do crescimento. Nunca foi realmente observado. O que é real é que o nosso bem-estar material aumentou exponencialmente desde o início da revolução tecnológica. O debate está aberto. A inovação continuará indeterminada como Schumpeter brilhantemente nos ensinou. Cabe aos economistas compreender a inovação depois dela se manifestar. Steve Jobs não era economista e não precisou de grande formação para revolucionar a tecnologia.

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