Uma breve digressão sobre os ecos na blogosfera
do debate económico travado nas sessões do Simpósio de Banqueiros no fim do
mundo de Jackson Hole excedeu claramente as minhas expectativas. E não apenas
pela forte repercussão nos meios de comunicação social, de imprensa económica e
não só, suscitada pela intervenção de Draghi, após a intervenção de Janet
Yellen no mesmo Simpósio.
O título do post
de hoje não pretende reproduzir a eventual polarização de opiniões que se terá
formado no ambiente do Simpósio. O tema polarização tem nos últimos tempos um
significado claro na economia do trabalho e tem origem no já conhecido e aqui
comentado fenómeno da polarização de empregos nas principais economias
desenvolvidas. O topo (empregos de altas qualificações, intensivos em
competências abstratas) e a base (empregos de baixas qualificações e intensivos
em competências manuais) da estrutura dos empregos tenderam nos últimos tempos
a ganhar importância face aos grupos intermédios dessa estrutura (empregos de
qualificações médias e intensivos em competências de rotina, mais facilmente
substituíveis por computadores). Curiosamente, o reforço simultâneo do topo e da
base não é acompanhado por comportamento similar dos salários: o topo tende a
desenvolver padrões salariais crescentes, ao passo que a base tende a
afundar-se em baixos salários.
A intervenção de David Autor em Jackson Hole teve
um grande impacto sobre esta matéria. Autor não cunhou a designação, mas é
indiscutivelmente um dos investigadores mais consistentes sobre o tema. A sua
intervenção mostrou essa consistência, contendo uma dimensão adicional que me
apraz registar, por razões que procurarei hoje evidenciar.
O paper apresentado por Autor tem essencialmente
duas partes: uma primeira em que desenvolve essencialmente os argumentos principais
da tese da polarização (largamente tributária de artigos anteriores que lhe
granjearam a notoriedade no tema); uma segunda em que explora aspetos ainda não
suficientemente desenvolvidos em artigos anteriores.
Os argumentos fundamentais em que assenta a tese
da polarização incidem sobretudo nas consequências que o progresso técnico
(essencialmente determinado pela computarização da economia) tende a provocar
em diferentes tipos de empregos competências. As chamadas competências abstratas
e criativas, associadas às mais elevadas qualificações, tendem a beneficiar com
a complementaridade com a computarização nas suas diferentes formas. As competências
manuais associadas a baixas qualificações têm a particularidade de não serem
simuláveis e substituíveis pela computarização, já que pressupõem competências in situ, não externalizáveis por outsourcing internacional, embora isso não
signifique progressão dos salários dada a elevadíssima oferta de trabalhadores
desqualificados. Para além disso, trata-se de um último reduto de competências de
média qualificação, as quais, perdido o emprego e face à probabilidade de permanecerem
no desemprego, optam por concorrer a empregos desqualificados para as suas
competências. Finalmente, as competências perdedoras reúnem sobretudo os
empregos que fazem apelo a tarefas de rotina, facilmente programáveis, e tendem
por isso a ser destruídas pelo avanço da computarização na economia. São também
em grande medida externalizáveis por outsourcing
internacional. Veja-se o caso das contabilidades e outras operações administrativas.
As teses de Autor readquirem visibilidade e
importância sobretudo numa época em que as grandes ameaças ao emprego
provocadas pela tecnologia da automação e robotização voltam a animar as conceções
catastrofistas do progresso tecnológico. O investigador americano esforça-se
por demonstrar que essas perspetivas sobrevalorizam o potencial destruidor de
emprego por parte da computarização, salientando entre outros aspetos a elevada
complementaridade que as tecnologias de informação e comunicação e os
computadores em particular mantêm com a geração de novos empregos.
Mas, como anteriormente referi, o artigo de Autor
em Jackson Hole dois desenvolvimentos sugestivos.
O primeiro é de natureza empírica e está centrado
na evidência, pelo menos recolhida para a economia americana, de que após 2000
se assistiu a uma desaceleração do crescimento dos empregos baseados em competências
abstratas e criativas, com o emprego neste grupo a não acompanhar a evolução da
oferta de trabalhadores com formação superior. No primeiro trimestre de 2014, o
investimento empresarial privado em equipamento de processamento de informação
e em software desceu ao seu mais
baixo nível desde a revolução do dot.com (3,5% do PIB). A explicação desta evidência
abre um amplo debate sobre esta matéria que vai desde a hipótese do investimento
neste tipo de tecnologias e a evolução das competências exigidas pelo paradigma
da computarização se potenciarem mutuamente até à tese de Robert Gordon de que
o progresso técnico das TIC esgotou o seu potencial de crescimento. O debate está
aberto e a experiência mostra que os economistas são, regra geral,
surpreendidos pela evolução tecnológica, confirmando a indeterminação do fenómeno
inovação. É célebre a história do modo como o CEO da IBM na altura em que os
computadores davam os seus primeiros passos desvalorizou o impacto futuro da
descoberta. O mundo da tecnologia é mais o campo de homens como Steve Jobs do
que dos economistas. Estes têm-se destacado em compreender e explicar a inovação
a posteriori, não a prevê-la ou antecipá-la.
O segundo aspeto de novidade do paper de Autor
tem a sua génese na invocação de um importante contributo de Karl Polanyi para
a economia da inovação: “sabemos mais do que sabemos ou podemos exprimir”. Ou
seja, Autor regressa a um dos meus fascínios, o conhecimento tácito. É óbvio
que o conhecimento tácito que não pode ser comunicado não pode também ser
programável e isso explica que as competências que implicam bom senso, domínio da
situação e do contexto não sejam substituíveis por computadores. O contributo
de Autor consiste em analisar desenvolvimentos recentes no conhecimento da tecnologia
e discutir em que termos essa impossibilidade pode ser parcialmente atenuada
pelo progresso tecnológico. Ou seja, em que termos a computarização de tarefas
para as quais não se conhecem as regras é possível.
Autor estuda em pormenor desenvolvimentos tecnológicos
que podem contornar ou minimizar o paradoxo de Polanyi, um dos quais é o
desenvolvimento de máquinas aprendentes, baseadas em poderosos sistemas de análise
de dados de experiência. O potencial dinâmico deste desenvolvimento tecnológico
é substancial, podendo gerar novas necessidades e complementos de competências abstratas.
Autor sustenta que a polarização não acontecerá para todo o sempre. E dá o
exemplo de empregos de qualificações intermédias e remunerações não
propriamente baixas, como acontece com o universo de profissionais e técnicos de
saúde, que não exigem formação superior completa e está a ver bem o potencial,
em meu entender.
O catastrofismo quanto ao efeito destruidor do emprego
pela tecnologia tem sido uma presença regular ao longo de diferentes momentos
da história da tecnologia e do crescimento. Nunca foi realmente observado. O
que é real é que o nosso bem-estar material aumentou exponencialmente desde o
início da revolução tecnológica. O debate está aberto. A inovação continuará
indeterminada como Schumpeter brilhantemente nos ensinou. Cabe aos economistas
compreender a inovação depois dela se manifestar. Steve Jobs não era
economista e não precisou de grande formação para revolucionar a tecnologia.
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