terça-feira, 19 de agosto de 2014

MATEMÁTICAS DO EURO

(Bernardo Erlich, http://elpais.com)

Prometi aqui (post de 23 de julho) que voltaria a Bernard Maris (BM) e à sua viragem de posição em relação à moeda única europeia. E cá estou a cumprir, recorrendo sobretudo à divulgação dos seus artigos no espaço de blogues da “Alternatives Économiques” por GIlles Raveaud sob o título “Sortie de l’euro: Bernard Maris vire sa cuti”. Não que os pontos de vista do autor me convençam plenamente, mas porque reconheço o brilho desafiante bastante na respeitável eficácia do vulgarizador económico – veja-se, p.e., o seu interessante “Marx, Ô Marx, pourquoi m'as-tu abandonné?“ (2010) – e, ademais, porque ele revela uma tipologia de argumentação que vai ganhando adeptos em grandes países europeus (França à cabeça). Sintetizo-a em sete grandes pontos.

Primeiro, a proclamação essencial e o seu enquadramento: “Votei sim a Maastricht e sim ao Tratado Constitucional. Hoje, penso que é preciso abandonar a Zona Euro.” Pois foi deste modo que BM começou por reconhecer o seu “erro”, demasiado tarde como confessa. Explicando ainda que o cometera porque chegara a acreditar na ilusão de que “uma moeda única nos poria na via de uma Europa federal.”

Segundo, a autocrítica da sua própria “idiotice”, assim: “Os Estados conservavam a autonomia fiscal, não havia orçamento federal. A partir daí, em vez de se unirem por causa da moeda única, os Estados iam lançar-se numa concorrência fiscal e orçamental: iam organizar o seu orçamento à sua maneira, sob o guarda-chuva do Euro. Os gregos, por exemplo, pediam empréstimos em euros mas reembolsavam em “economia grega”, quer dizer, em feta e queijo de cabra. Os alemães pediam empréstimos em euros e reembolsavam em Porsche e Mercedes, os franceses em malas Vuitton, etc. etc. De maneira que os empréstimos concedidos em moeda única não impediam a separabilidade das dívidas: uma dívida grega vale queijo, uma dívida alemã máquinas-utensílios e tecnologia de ponta. Cada qual a sua coisa.” Acrescentando: “Quanto mais forte era o Euro, mais os alemães estavam satisfeitos porque vendiam máquinas de que ninguém pode prescindir: vendiam-nas, pois, cada vez mais caro, investiam em máquinas de cada vez melhor desempenho e com um serviço pós-venda impecável, enquanto os gregos já não chegavam a vender o seu queijo; a tal ponto que a indústria agroalimentar alemã acabou por recuperar o fabrico de queijo grego (autêntico).”

Terceiro, alguns dos alegadamente verdadeiros efeitos da moeda única europeia: “Em 1992, François Mitterrand abriu uma segunda Guerra dos Trinta Anos ao acreditar que pela moeda única amarrava a Alemanha à Europa. A Alemanha realiza sem o querer pela economia o que um chanceler louco tinha já conseguido pela guerra: destrói em lume brando a economia francesa. (...) Mais de vinte anos de guerra económica passaram e a indústria alemã laminou as indústrias italiana e, sobretudo, francesa. Hoje, a guerra está acabada e ganha. (...) A Alemanha já não precisa mais da Zona Euro.”

Quarto, o aprofundamento dos mecanismos e dos seus efeitos destruidores: “Que interesse têm os gregos em ficar na Zona Euro? Nenhum. Eles acabarão, aliás, por ser tramados de fora, pelos “mercados” (os emprestadores em euros que, como todos os credores, preferem emprestar aos ricos do que aos pobres). Os franceses também pagaram de modo assustador a política do euro forte. Porquê uma política de euro forte? Porque a indústria alemã fica feliz com um euro forte e porque os rentistas do mundo inteiro ficam felizes com um euro forte. Quando emprestas, queres que o teu capital mantenha o seu valor. Quanto mais o euro sobe, mais o teu capital ganha valor, mais contente tu ficas. Uma moeda forte é feita pelos emprestadores (rentistas), uma moeda fraca pelos que pedem emprestado (as famílias, as empresas) (...). O euro forte destruiu a indústria francesa. Outros fatores ajudaram: a nulidade dos patrões franceses, a insuficiência da investigação, a transferência maciça das ‘inteligências’ (sic) para a finança em detrimento da indústria. Ou ficamos no euro, e aceitamos que não haja qualquer indústria em França, que apenas sobre o turismo e um pouco de indústria informática ligada aos media, mas nem aviões, nem indústria farmacêutica, nem biotecnologias, nem automóveis evidentemente, nem nada, ou saímos do euro e salvamos o que pode ser salvo.”

Quinto, a inevitável alternativa e a sua maquinação: “É preciso sair do Euro? Sim. É possível? Isso é uma outra história.” Vejamos um daqueles detalhes: “Antes de encarar a saída do Euro, é preciso refutar o sofisma de Benoit Apparu [um ex-ministro do governo Fillon e atual maire]. Numa cadeia de televisão, ele disse: ‘A dívida francesa é de 2 biliões (dos quais 1,3 detidos por estrangeiros). Sair do euro desvaloriza o eurofranco (a nova moeda) em 25%. Automaticamente, devemos 400 mil milhões a mais. Dito de outro modo, um orçamento de Estado anual. Portanto, não podemos sair, cqd.’ Só que é falso. A dívida, no dia em que sairmos do Euro, deixa de ser denominada em euros e sim em eurofrancos. Portanto, devemos de imediato 2 biliões de eurofrancos. E reembolsamos em eurofrancos emitidos pelo Banco de França. Benoit Apparu raciocina como se mudássemos de moeda sem sair da Zona Euro. Sofisma.” E ainda: “É por demais evidente que nem a Grécia, nem Portugal, nem a Espanha, nem mesmo a França e a Itália poderão alguma vez reembolsar a sua dívida com um crescimento lento e uma indústria devastada. A Zona Euro rebentará, portanto, à próxima crise grave de especulação contra um dos cinco países pré-citados.” Para concluir: “Existe escolha: sair do Euro ou morrer em lume brando. Caso contrário, o dilema para os países da Zona Euro é bastante simples: sair de modo coordenado e suavemente ou esperar o tsunami financeiro.”

Sexto, a ilustração de certos requintes de uma assumida vontade de clarificação: “A saída doce e coordenada é bastante simples e já foi encarada por vários economistas. Trata-se, muito simplesmente, de voltar a uma moeda comum que sirva de referencial às diferentes moedas nacionais. Esta moeda comum, definida por um ‘cabaz de moedas’ nacionais, atenua as especulações contras as moedas nacionais. É um regresso ao SME (Sistema Monetário Europeu)? Sim. Margens de flutuação em torno da moeda comum. Uma estabilização da especulação através de limites aos movimentos de capitais, estabilização que poderia tornar-se acrescida com uma taxa tipo Tobin sobre esses mesmos movimentos de capitais. Mas o SME falhou, dirão... Sim, porque o SME não se propôs lutar contra a especulação e não adotou uma “câmara de compensação” como desejava Keynes no seu projeto sobre Bretton Woods (abandonado em proveito do projeto americano).”

Sétimo, a insistência na moral última da história: “O melhor meio de tornar a Europa odiosa, detestável por muito tempo, de fazer a cama em que se deitem os nacionalismos mais estreitos, é prosseguir essa política imbecil de moeda única associada a uma ‘concorrência livre e não falseada’ que faz desmaiar de alegria os que dela beneficiam, chineses, americanos e outros BRICs.” Ou, dito de outra forma: “É evidente que o controlo do político sobre a moeda não basta para tornar uma economia poderosa: a investigação, a educação, a solidariedade são decerto também importantes. Mas deixar os ‘mercados’ governar os países é, muito simplesmente, uma vergonhosa covardia.”

Pano para muitas mangas…

Sem comentários:

Enviar um comentário