(À medida que caminhamos para o fim da legislatura, confirma-se
a ideia de que os problemas do Governo não foram essencialmente provocados
pelos parceiros de acordo parlamentar ou pela oposição, mas antes pelos enredos
em que se deixou mergulhar. E não me venham com a explicação de que estava em curso a mudança da lei. A
ligeireza com que membros do Governo equacionam as incompatibilidades incomoda
todo aquele que tem um mínimo de bom senso)
Quem andar minimamente atento na política sabe que um dos ónus mais
elevados a que um político se submete em Portugal está para além da tensão com
que o quotidiano desses agentes políticos se transforma. Estou a falar dos
custos e sacrifícios a que um governante com alguns escrúpulos de integridade e
transparência submete a sua família, não apenas em termos de escrutínio das
suas vidas pessoais, privadas e profissionais, mas também em termos das
incompatibilidades de assunção de negócios com o Estado.
Como é óbvio nos casos que foram tornados públicos na sequência da
trapalhada das golas para o kit de segurança antifogos ninguém coloca em causa
a probidade dos ministros e secretários de Estado envolvidos e muito menos a sugestão
de que terá havido viciação de atos públicos. Mas a verdade é que havia uma lei
da Assembleia da República conhecida de todos que proíbe familiares próximos de
fornecer serviços ao Estado, quaisquer que sejam os processos de contratualização.
Dos casos divulgados há situações para todos os gostos e feitios, seguramente
com gradações no incumprimento. Como é óbvio, um fornecimento de bens ou serviços
por parte de um familiar de governante a uma Universidade ou Politécnico não se
situa no mesmo patamar de um fornecimento a um ministério, não aquele sob tutela
do familiar em causa mas de um outro.
Em tudo isto, o que mais choca é ver a ministra da Justiça envolvida neste
rocambolesco processo. O Professor Eduardo Paz Ferreira não é uma pessoa
qualquer, é alguém com uma elevada credibilidade e valor intelectual, pelo que
me custa de sobremaneira vê-lo a infringir a referida lei das incompatibilidades,
a não ser que se tenha precavido, ele ou o Ministério da Administração Interna,
procurando saber se o poderia fazer ao abrigo de qualquer exceção. Cá entre nós,
os juristas e mais os advogados são peritos em definir exceções na lei para si
próprios. Sei lá se Eduardo Paz Ferreira terá beneficiado de alguma exceção ou
autorização específica invocando a ideia de parecer, estudo ou coisa parecida.
Mas para mim a situação criada diz bem da ligeireza e leviandade com que os
agentes políticos e governantes tratam estas coisas em sede própria e para cúmulo
envolvendo um jurista e a sua mulher que por acaso é ministra da Justiça. Claro
que ninguém está a sugerir que Francisca Van Dunen possa ter influenciado a
decisão do Ministério da Administração Interna. Estou certo que não é isso que
está em causa. O que está em causa é a ligeireza com que estas coisas das incompatibilidades
são tratadas.
Confirma-se, assim, a propensão doentia do Governo para atirar nos próprios
pés ou em qualquer elemento do corpo que esteja mais à mão. De facto, retirando
o descontrolo de situação provocado por um sindicato não-alinhado (o dos motoristas
de viaturas que transportam matérias perigosas) e assessorado juridicamente por
um advogado do tempo da lei seca nos EUA, praticamente todas as restantes
incomodidades políticas foram provocadas por erros próprios, da inábil
desvalorização do investimento público infraestrutural que valeu uma ida para o
Parlamento Europeu até Tancos, passando pelas várias tragédias dos incêndios, a
matriz é a mesma. O pé foi metido na argola, desvaloriza-se, depois corrige-se
e finalmente pede-se a interpretação da lei.