terça-feira, 4 de julho de 2023

NOVOS TEMPOS NO SUPREMO TRIBUNAL AMERICANO

 

                                                                (New York Times)

(Na semana passada, mais uma decisão controversa do Supremo Tribunal Americano veio mostrar que, sem terem sido registadas na sociedade americana grandes alterações de correntes de opinião e fruto apenas da recomposição dos membros do Tribunal que favorece e se identifica com a maioria republicana mais conservadora, a decisão agora tomada consagra orientações na linha do radicalismo mais conservador que vai assentando arraiais e capturando pontos chave da democracia americana. O tema foi muito pouco discutido na imprensa portuguesa e, por isso, decidi dedicar-lhe um post específico, sobretudo porque se trata dos efeitos de uma simples mas decisiva recomposição de membros, que começou a ser perpetrada nos tempos de Trump, como não poderia deixar de ser. Além disso, a discriminação racial nas Universidades é o tema da decisão, o que alarga o interesse dele ser aqui discutido.)

 


Se há tema a que investigação sociológica e americana tem dedicado uma vastíssima atenção é o da desigualdade racial. Lá bem atrás no tempo, quando iniciava nos anos 70 os meus estudos de economia do desenvolvimento e andava às voltas com o conceito de causalidade circular e cumulativa proposto pelo economista sueco Gunnar Myrdal, a leitura de uma obra deste economista marcou-me para sempre. An American Dilemna, obra de 1944, conduziu-me então pelo labirinto das profundas desigualdades raciais na sociedade americana e desde essa leitura relativamente pioneira muitas outras investigações relevantes ajudaram-me a compreender a perenidade do fenómeno, do seu enraizamento, envolvendo população negra, latino-americana e asiática.

Numa sociedade com este tipo de desigualdade enraizado, é natural que o acesso à formação superior, designadamente às Universidades do topo do sistema académico americano e consequentemente aquelas que são mais valorizadas como fonte de captação de talento e emprego, esteja fortemente condicionado pela condição étnica e racial.

É neste contexto que devem ser compreendidas as práticas de “affirmative action” assumidas pela generalidade das universidades americanas no sentido de mitigar tais desigualdades. Tais práticas podem ser entendidas como formas de discriminação positiva que ensaiam senão resolver o problema do condicionamento racial pelo menos oferecer a alguns dos representantes desses grupos étnicos e sociais melhores condições de admissão. O gráfico proveniente da universidade californiana UCLA ilustra efeitos desse tipo de práticas que, embora suspensas a partir de 1996 nas universidades públicas, lograram recompor a etnicidade dos acessos aquela importante instituição de ensino superior.

A decisão da passada semana do Supremo Tribunal tinha por objeto as “affirmative actions” de Harvard e da Carolina do Sul e traduziu-se na prática na rejeição da possibilidade das Universidades americanas poderem utilizar tais práticas de discriminação positiva. O argumento central invocado pela maioria republicana conservadora que domina por agora o Tribunal consistiu em dizer que a Constituição americana proíbe qualquer forma de discriminação racial. Com este argumento simultaneamente simples e radical, o Supremo Tribunal logra anular todas as políticas de admissão com base na mitigação de problemas raciais, que eram assumidas em linha com a 14ª emenda dessa mesma Constituição que visa assegurar condições de proteção igualitária aos diferentes grupos sociais. Com esta mesma decisão, o Supremo Tribunal barra o caminho a uma massa relevante de estudantes que beneficiou dessas medidas afirmativas, determinando que muito provavelmente a percentagem de jovens negros, latino-hispânicos e asiáticos vá diminuir substancialmente, realinhando as mais valiosas Universidades americanas com o tom geral de desigualdade que caracteriza a sociedade americana. E o que é simultaneamente cínico e absurdo é que o argumento invocado seja o de que a Constituição americana proíbe qualquer forma de discriminação racial. Estranhamente, a decisão do Supremo Tribunal deixou de fora as academias militares, causando estranheza por isso, já que não se compreende bem a admissibilidade de medidas positivas anti-discriminação neste tipo de estabelecimentos, rejeitando-as nas Universidades.

Do que foi entretanto conhecido na opinião pública, é provável que esta decisão do Supremo Tribunal não cause tão impacto como aconteceu com a sua decisão relativa às práticas de aborto, que impactou e revoltou uma grande parte da sociedade americana.

O debate suscitado tem sido, entretanto, vasto e apaixonado, entre outros motivos porque a agora derrotada Harvard não apresenta um curriculum invejável em matéria de admissões de grupos raciais e étnicos desfavorecidos, com relevo para a fortíssima discriminação de candidatos asiáticos-americanos.

Os juízes conservadores parecem ter optado por considerar que não existem boas e más ações de discriminação positiva, o que suscita agora a questão de saber como é que as principais Universidades vão recriar e inventar outras medidas que possam favorecer a diversidade. Até porque, ao contrário do que algumas perspetivas defendem, não existe evidência de que as populações até agora beneficiárias destas ações de discriminação positiva tenham sido penalizadas por isso, sendo obrigadas a frequentar cursos que não desejavam.

Abre-se, assim, um novo campo de políticas de admissão: como é que as Universidades poderão prosseguir políticas que valorizem a diversidade, a igualdade e a inclusão? Isto até que o Supremo Tribunal não encontre forma de rejeição invocando um outro qualquer princípio constitucional. 

Entretanto, o problema endémico da desigualdade étnica e racial persiste. Apesar dos progressos observados na recuperação pós-pandémica em matéria de desemprego e salários, as disparidades continuam a persistir, como nos dá conta este trabalho publicado pelo American Progress.

 

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