segunda-feira, 31 de julho de 2023

MELONI OU A SEREIA VICIOSA

 


 (Já por repetidas vezes neste espaço trouxe para a reflexão a alteração substancial registada no xadrez democrático europeu com a chegada ao poder de forças políticas antidemocráticas, que não hesitam em explorar as malhas da democracia para a minar por dentro. O movimento em curso é perturbador. Com exceção de Portugal e Espanha, cujos eleitorados têm resistido a esse tipo de voto de protesto, contendo esse fenómeno nos limites do suportável, a União Europeia convive perigosamente com o despudorado avanço dessas forças. Na Itália e na Polónia elas já lá estão, com matizes diferenciados, invocação do legado de Mussolini em Itália e nacionalismo religioso tradicionalista na Polónia. Em França, o Rassemblement Nacional de Le Pen é uma ameaça permanente, nos Países Baixos a confusão está instalada e até um partido agrário populista de mau porte emergiu, na Áustria a extrema-direita tem estado sempre presente e anda pelas franjas do poder, na Alemanha o execrável Alternativa para a Alemanha morde os calcanhares do SPD e da CDU e na Escandinávia do apetecível modelo social, para nossa perplexidade, a extrema-direita põe as garras de fora. O que importa destacar nas diferentes formas de manifestação deste fenómeno é a peculiar maneira como algumas destas forças se posicionam e movimentam no seio das instituições europeias, protagonizando uma hábil estratégia de utilização desse posicionamento para suavizar a sua presença, mostrando ardilosamente ao eleitorado, do seu país e europeu em geral, como era exagerado o propósito dos cordões sanitários e impeditivos da sua proliferação.)

É relativamente a este último aspeto que a estratégia de Giorgia Meloni, uma fã de Mussolini, herança que a primeira-Ministra italiana se tem esforçado por apagar, embora sem grande convicção, deve suscitar uma reflexão à parte, porque é meu entender o exemplo mais conseguido dessa estratégia de normalização da extrema-direita, não deixando por isso de se perfilar entre os líderes europeus, estando muito longe de ser na prática uma liderança marginalizada. Basta estar atento às imagens que antecedem os Conselhos Europeus para compreender essa não marginalização.

A constituição do governo italiano com base numa coligação de forças de extrema-direita mostrou, desde logo, a capacidade desta última para compreender objetivamente que no triunvirato Meloni-Salvini-Berlusconi com as suas forças políticas de origem a personagem mais capaz para trazer a extrema-direita ao poder era Meloni. Estou mesmo convencido que essa escolha teve em ponderação saliente o posicionamento nas instituições europeias e, decididamente, nem Salvini nem Berlusconi teriam esse golpe de asa para dissimularem os seus projetos políticos no posicionamento europeu.

O que é importante assinalar é que, no caso da Itália de Meloni e por extensão do caso polaco, a guerra da Ucrânia e o posicionamento no seio das forças políticas e instituições europeias têm funcionado como a cereja no bolo para o projeto deliberado destas forças de extrema-direita normalizarem a sua chegada ao poder. Aquilo que por exemplo com Salvini seria extremamente problemático, dada a relação de fascínio que o político italiano sempre manteve com o autoritarismo de Putin, Meloni tem utilizado a sua permanente posição de apoio as opções de Von der Leyen em relação à Ucrânia para aparecer na linha da frente do apoio europeu e assim fazer esquecer a sua afeição de juventude às ideias de Mussolini, a sua ligação a movimentos neofascistas e a própria agressividade da sua retórica política. Essa posição de suporte às pretensões ucranianas tem servido a Meloni como um instrumento de passagem de algumas das sujas posições mais radicais relativamente ao acolhimento de imigrantes. Os equilíbrios europeus concretizam-se quase sempre em cima de contrapartidas complexas e a primeira-Ministra italiana tem evidenciado uma grande habilidade em assumir esse jogo. O mesmo se diga quanto à sua posição no fórum político do G7 e a próxima viagem a Washington para ser recebida por Biden culmina o branqueamento de uma figura de passado e ideias incómodos (o jornalista ensaísta David Broder do New York Times é particularmente hábil em projetar este tipo de normalização internacional de Meloni).

Claro que quando se desce à terra da política italiana, e essa nem sempre tem a divulgação internacional que dificultaria a referida normalização ou branqueamento, é possível confirmar que os tiques do autoritarismo não desapareceram e que o partido de Meloni prossegue a sua sanha de outro tipo de normalização, em linha com o seu conservadorismo retrógrado, xenófobo ou mesmo cruel do ponto de vista social, designadamente para com os imigrantes.

E, tal como na Polónia, de liberdade de expressão estamos aviados. A tentação controladora está lá, talvez menos expressiva do que a observada na Polónia ou na Hungria, mas sempre na procura de afastar os mais incómodos, os que não se deixam encantar pelo canto da sereia viciosa, da rádio à televisão, passando pelos jornais. Aliás, o que não é novidade nenhuma, pois Berlusconi construiu todo o seu poder eleitoral e de figura carismática apoiado num grupo televisivo que lavava a cabeça a baixo preço dos seus espectadores, preparando a sua ascensão.

Apetece dizer que quando comparamos a força e a inteligência desta sereia viciosa com o nosso Ventura daria para rir, mas os tempos não estão para graçolas.

Só queria destacar o efeito que esta normalização ou branqueamento, concretizado através do exercício do poder e da hábil utilização do posicionamento europeu, tem no adormecimento dos eleitorados.

Se em Portugal e Espanha os eleitorados parecem bem despertos e não dispostos a engolir esta normalização, isso, a par da proteção do anticiclone que nos vai garantindo alguma mitigação climática, não são mais do que contrapartidas, que alguns considerarão inglórias, da nossa reduzida influência europeia.

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