(Financial Times)
(O confronto entre Francisco Louça e Ricardo Reis em matéria de avaliação da política anti-inflacionista do BCE que o meu colega de blogue trouxe para este espaço, reproduzindo largamente as incidências de um programa de televisão, é de facto particularmente ilustrativo da conflitualidade insanável que atravessa a macroeconomia e que define bem as limitações desta tribo e da sua audiência pública quando confrontadas com outras ciências como, por exemplo, a física. Porém, quando se confrontam posições tão opostas, é por vezes difícil apanhar nuances de um debate, que sempre existem nestas coisas e que se mantivermos o critério da polarização máxima correm o risco de ficar ocultas e se perderem na espuma do confronto. É neste âmbito de procura de nuances num debate demasiado complexo para ficar limitado à polarização dos extremos que gostaria de trazer para este espaço o contributo do cronista do Financial Times Martin Sandbu, aquele pelo qual ficamos frequentemente frustrados pois o acesso às suas crónicas só está autorizado a quem seja assinante Premium do FT e não um assinante normal como eu sou. Mas, por vezes, na Free Lunch newsletter do FT o pensamento de Sandbu é reproduzido e aqui estou a aproveitar essa possibilidade para o fazer participar deste debate ao qual este blogue tem dedicado a atenção que merece. É também uma oportunidade para regressar à minha interpretação do que se passou em Sintra e do clamor que as declarações de Lagarde suscitaram, essencialmente construída a partir da leitura atenta do discurso público de um membro executivo do BCE, a Professora Isabel Schnabel, que passou largamente despercebido na nossa imprensa económica.)
Martin Sandbu é um personagem curioso para trazer para o debate, pois pode considerar-se que se trata de alguém que vem de dentro do processo e não propriamente um perigoso esquerdista intervencionista descrente da política monetária. É assim alguém que não é apanhado nas malhas da polarização extrema. O título da crónica de Sandbu é por si só um monumento de provocação: “E se os bancos centrais não pudessem fazer nada acerca da inflação?”.
A crónica é muito estimulante, pois como acontece quase sempre, Sandbu inspira-se numa abordagem conceptual menos corrente para elaborar o seu pensamento. Neste caso, o cronista do FT inspira-se no princípio que designa de “equivalência na observação” e que consiste na possibilidade de várias explicações rivais serem compatíveis com toda a observação suscetível de ser recolhida. O risco é compreensível: o facto de basearmos a política monetária numa teoria que responde bem aos dados observados não afasta a possibilidade dessa mesma observação poder ser compatível com uma interpretação rival que seja a correta ao contrário da praticada.
Invocando este simples princípio, Sandbu retoma um argumento que me atrevi a utilizar na minha já referida crónica sobre o assunto. De facto, perante tanta incerteza, aliás reconhecida pelos próprios bancos centrais quando eles próprios não acreditam nas suas próprias previsões, corrigindo-as com uma assiduidade preocupante, seria de esperar por decisões bem mais modestas e prudentes por parte desses mesmos bancos centrais. Ora, o que se passa e Sandbu é especialmente perspicaz ao identificar o problema, é que perante esta indeterminação crescente os bancos centrais parecem mais determinados na sua ação. Algo parece ser incoerente nesta contradição. E o argumento para a política monetária ser mais apertada e restritiva não deixa de nos surpreender a todos: nos seus erros sistemáticos de previsão, os bancos centrais tenderiam mais a subestimar as pressões inflacionistas do que a sobreestimá-las e daí a necessidade de tornar a política monetária mais restritiva. Esperem lá, deixem-me perceber o ponto: afinal, a política monetária é mais restritiva para compensar os erros de previsão de quem a concebe?
Francisco Louçã e Ricardo Reis são personagens com um curriculum académico invejável, gente que pensa bem e reputada e este Vosso Amigo é um simples aprendiz de feiticeiro. Mas não há aqui matéria que deva ser melhor pensada para lá dos galões dos dois intervenientes no programa televisivo? Sandbu já não é propriamente um aprendiz de feiticeiro e ousa admitir a hipótese de haver explicações rivais para a mesma evidência empírica.
A questão fundamental aqui implícita é este facto simples: os bancos centrais consagram uma política monetária mais restritiva para compensar os seus erros de previsão e o risco de subestimação das pressões inflacionistas, mas recusam-se a integrar na equação os custos associados de uma restrição excessiva dessa mesma política monetária. E não podemos também ignorar que uma das dimensões responsáveis pela explosão inflacionária (os choques de oferta) está ela própria a diminuir por sua livre conta e risco, não tendo os bancos centrais contribuído rigorosamente em nada para essa evidência. E sabemos também que, de modo geral, os salários estão simplesmente a integrar a inflação passada e de maneira alguma a liderar essa inflação. Claro que os preços excluindo a alimentação e a energia e os preços dos serviços estão a descer mais lentamente, a que devemos adicionar o facto das expectativas inflacionárias a três anos estarem ainda 0,5 pontos percentuais acima da meta da inflação a 2%, mas controladas (ver gráfico acima).
É neste ponto que Sandbu convoca a tal explicação rival que pode ser compatível com toda esta mesma evidência empírica. E se afinal concluíssemos que os bancos centrais não poderiam ter feito rigorosamente nada para contrariar os fatores que determinaram a explosão inflacionária, assim como o seu contributo será reduzido ou nulo para a descida da inflação observada nos últimos tempos?
Sandbu conclui provocatoriamente: “aceitar que nada pode fazer é duro para qualquer fazedor de políticas. Mas “não provoque estragos” é também um princípio de grande utilidade”.
Claro que estas questões não têm as mesmas implicações quando o mandato do banco central não se reduz apenas à manutenção da estabilidade dos preços e integra outros objetivos como o do controlo do nível de atividade económica, crescimento e emprego (mandato simples como no BCE, o principal erro histórico da social-democracia europeia, ou mandato dual).
Regresso, por isso, ao meu argumento inicial. Por muito que custe aos galões académicos dos monetaristas e aqueles que encolheram os ombros com o mandato simples do BCE, os bancos centrais estão hoje perante indeterminação, incerteza e desconfiança quanto ao seu poder real de intervenção a mais, justificando por isso mais modéstia e prudência da sua parte do que a que têm revelado optando por decisões cujos efeitos e custos devem fazer parte da equação da decisão.
A polarização dos argumentos não deve inibir os cidadãos críticos, inteligentes e medianamente informados de ousar contrariar os senhores da palavra televisiva.
E, já agora, o princípio da “equivalência da observação”, brilhantemente invocado por Sandbu, deve fazer parte do kit de pensamento que todo o cidadão crítico, inteligente, medianamente informado e não necessariamente economista deve ter sempre à mão.
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