terça-feira, 27 de junho de 2023

QUEM NÃO TEM CÃO …

 

(Há dias, em post anterior, dei comigo a exclamar “quisera ser mosca” para seguir por dentro a discussão do Banco Central Europeu, na Penha Longa, em Sintra, sobre o rumo futuro da política anti-inflacionista que, no âmbito do seu mandato, aquela instituição europeia pretende seguir. Não se trata de pretensiosismo tonto. Todos sabemos que as condições económicas e materiais das nossas vidas podem ser fortemente impactadas pelo tom e alcance que, nessa reunião fechada, a discussão possa assumir. Mas como, apesar de tudo, o BCE não é propriamente uma sociedade secreta, de avental ou outro qualquer fardamento, procurei outras fontes que me permitissem antecipar e compreender melhor o que está em jogo no que Adam Tooze designa de segunda fase da política anti-inflacionista. Quem não tem cão caça com gato e foi isso que me limitei a fazer. E dessa caça reza este post.)

Sem ter muito que porfiar, a página WEB do próprio BCE forneceu-me os elementos necessários para esta reflexão. 

Um membro executivo do Board do BCE desde 2020, a Professora Isabel Schnabel, proveniente da Universidade de Bona, proferira poucos dias antes do encontro de Sintra um discurso designado de “Os riscos da teimosa inflação”. Trata-se de um documento relevante, não propriamente de difusão acessível para todo o cidadão, mas que, em meu entender, todo a gente com um conhecimento mínimo do que é a política monetária deveria ler com atenção. A importância do documento não escapou obviamente a gente avisada e perspicaz como Adam Tooze (link aqui).

Mas qual é efetivamente a importância do discurso, disponível aqui acompanhado dos slides que acompanharam a intervenção de Schnabel?

O discurso começa por ser um repositório simples e acessível do estado da arte da inflação que a política monetária do BCE tem tentado combater. A avaliação dada pela evidência disponível mostra que a descida assinalável dos preços da energia permitiu iniciar uma descida do ritmo de variação dos preços desde o seu pico mais recente, embora a chamada inflação subjacente, que expurga os preços da energia e da alimentação, se apresente com uma persistência mais saliente do que era esperada. Sob o pressuposto de que as margens de lucro terão condições para absorver o aumento dos custos do trabalho sem desencadear a temida espiral salários-preços e de que os choques de oferta provenientes da pandemia e da guerra mostram sinais de abrandamento, uma procura global mais amena, ditada pela política monetária restritiva essencialmente via crédito bancário, completa o quadro de previsões de para 2025, sim apenas em 2025, a variação de preços estar próxima da conhecida meta dos 2% da estabilidade monetária.

Apesar deste quadro geral aparentemente favorável, as perspetivas que emergem do discurso de Schnabel não anunciam propriamente um futuro isento de fortes riscos. Mas porquê?

O enunciado destes riscos é uma espécie de auto-declaração do BCE quanto aos limites da sua própria ação. E é essencialmente essa matéria que mais me interessa, pressupondo que quem assume as suas próprias limitações regra geral é prudente e não exorbita o seu poder de intervenção. Mas, como veremos, nem sempre os executores da política monetária revelam essa esperada modéstia.

O enunciado dos riscos de perturbações ascendentes do cenário central é relevante e vale a pena ser destacado. Compreensivelmente, o risco dos chamados choques de oferta negativos, ou como alguns designam os “desconhecidos que conhecemos”, é frequentemente invocado pelo Banco Central para defender a probabilidade das suas previsões darem para o torto. Neste caso, esse esforço vai ao ponto de invocar que o fenómeno do El Niño pode ser responsável por um aumento de 1% de temperatura na sua ocorrência gerar no ano seguinte aumentos de preços de alimentação de 6%.

Numa matéria que me agrada bastante, Schabel invoca também os chamados efeitos de histerésis. Choques aparentemente transitórios podem gerar efeitos persistentes de queda da atividade económica, o que deveria recomendar maior cautela na gestão dos efeitos de curto prazo das políticas restritivas. A autora cita dois particularmente importantes. 

Primeiro, a evidência de que as horas trabalhadas ainda não recuperaram valores de 2019, em parte associada ao aumento do número de dias de baixa médica, observado em alguns países com relevo para a Alemanha.  

Segundo e quanto a mim mais significativo, o gap entre o investimento atualmente observado e o que teria acontecido se a economia seguisse o seu trend anterior à pandemia tem continuado a aumentar, sugerindo que a disrupção das cadeiras de valor globais está longe de estar sanada e o atrito entre os EUA e a China tem-se encarregado desse facto. O setor automóvel é apresentado como caso de estudo, alicerçado sobretudo no aumento da vida média do parque automóvel, cavado pela indecisão quanto aos elétricos.

Mas a autoconfissão sobre os limites da política central (eu, Banco Central me confesso …) não fica por aqui. Surpreendentemente, Schnabel acusa o toque dos modelos de previsão à disposição da arte oscilarem na escala dos 0,9 aos 3,9 pontos percentuais para medir os efeitos concretos das ações assumidas pelo BCE (estou a ouvir bem? Um gap tão grande?).

E não satisfeita com esta catarse das limitações da política monetária, Schnabel não hesita ainda em destacar fatores estruturais que podem contrapor-se à boa vontade do BCE, para todos os gostos: (i) o peso crescente dos serviços nas economias afeta significativamente os mecanismos de transmissão da política monetária (menor sensibilidade às subidas da taxa de juro); (ii) a experiência crescente dos empréstimos com taxas de juro fixas limita os efeitos da política monetária restritiva (é o mercado estúpido!) e, finalmente, (iii) o mercado de trabalho pode apresentar-se menos flexível do que desejam os manuais e assim também complicar os mecanismos de transmissão da política monetária.

Poderíamos esperar que, expiadas as limitações e lavada a alma do regulador central europeu, o BCE se fizesse à vida mais prudente e avisado. Mas Ó santa ingenuidade, nada disso. Schnabel avisa-nos que uma coisa é a confissão, outra coisa bem diferente é o pós-confissão: “primeiro, os custos de proteger a economia dos riscos da inflação ficar acima do previsto são comparativamente pequenos (Ó Isabel como é que medes isso?), já que a taxa política pode ser trazida para os níveis neutrais mais rapidamente do que se os fazedores da política atuassem sob o pressuposto de uma persistente inflação baixa ( e os efeitos de histerésis afinal desapareceram?); segundo, o custo de reagir apenas depois dos riscos ascendentes se materializarem é muito elevado, porque isso desestabilizaria as expectativas de inflação e exigiria uma contração mais acentuada do produto para restaurar a estabilidade dos preços”.

As limitações são esquecidas e provavelmente Schabel resume bem o que terão sido as grandes conclusões da discussão na Penha Longa: “Temos por isso de manter taxas de juro crescentes até termos evidência convincente de que a inflação subjacente é consistente com o regresso da inflação à nossa meta de médio prazo de 2% de modo sustentado e atempado”.

Como diria o Luís Aguiar-Conraria no Twitter (@LConraria), “ora fo***se!”.

E, assim, o conservadorismo monetário, de alma lavada, continua a impor-se perante os nossos olhos de basbaques sem poder.

 

Sem comentários:

Enviar um comentário