terça-feira, 13 de junho de 2023

EXISTE UMA EXPLICAÇÃO TERRITORIAL PARA O POPULISMO?

 


(A descrição que considero mais abrangente do populismo é a que podemos encontrar na já aqui analisada obra de Barry Eichengreen da Universidade de Berkeley – The Populist Temptation: Economic Grievance and Political Reaction in the Modern Era, Oxford University Press. Eichengreen elenca três características que são praticamente comuns a todas as manifestações políticas do populismo entretanto observadas no espectro eleitoral de diferentes países – o discurso anti elites, a rejeição da imigração e dos imigrantes e o nacionalismo. Esta descrição parece-me suficientemente sólida para nos aventurarmos noutras direções, designadamente a de explicar o fenómeno, com o objetivo de o travar e combater. Mas nesta direção não é tão fácil construir consensos como aquele que Eichengreen nos propõe. A controvérsia é longa e robusta e estamos longe de uma teoria geral do populismo, suscetível de aplicação geral, obviamente adaptada ao contexto económico, social e político de cada país. É neste campo que se insere o post de hoje, trazendo para o debate a possibilidade de existir uma explicação territorial para o fenómeno do populismo. Não estou pessoalmente lá muito convencido da bondade desta explicação para a construção de uma teoria geral do populismo, mas a obra de quem a propõe exige atenção e respeito e já vão perceber a razão.)

A riqueza do debate em torno dos fatores explicativos do crescimento do populismo na cena política deve-se em grande medida à grande diversidade de fatores aos quais se atribui putativamente a origem do fenómeno. Essa diversidade acolhe controvérsia e oposição no seu seio. São conhecidos os chamados argumentos culturais que atribuem a origem do voto antissistema e consequente penalização dos partidos com assento passado ou presente na governação e potencial para assumir o poder. Estaríamos perante perdas de identidade impulsionadas pela transformação dos tempos, sentimentos de perda que atiram alguns eleitores para as margens antissistema do espectro político vigente, na sequência de fenómenos como a imigração, o multiculturalismo e miscigenização cultural e étnica, o cosmopolitismo e uniformização de modelos trazidos pela globalização. Essa perda de identidade não é senão a materialização da destruição dos sistemas de valores mais tradicionais. Mas os argumentos económicos não são menos apelativos. O crescimento da desigualdade em vias de intensificação entre os países mais desenvolvidos vem à cabeça (o fosso entre os winners e losers da globalização e do progresso tecnológico vai-se cavando) de todo o ressentimento de base económica.

Andrés Rodríguez-Pose da London School of Economics (o homem está presentemente num frenesim de produção científica, capitalizando a poderosa rede de investigadores que com ele trabalha) tem-se destacado nos últimos tempos, trazendo para o debate uma outra família de fatores, que poderíamos considerar de territoriais, para explicar a geografia evolutiva do populismo. Conforme é compreensível, a invocação do território opõe-se ao foco nas características dos indivíduos, seja dos seus traços socioculturais, seja das suas vulnerabilidades. Rodríguez-Pose é responsável pela difusão na academia e na ciência regional de conceitos como “left-behind places” (lugares em perda ou deixados para trás), “places that don’t matter” (lugares que não interessam a ninguém), “geography of discontent” (geografia do descontentamento) ou “geography of resentment” (geografia do ressentimento). Depois de vários ensaios, Rodríguez-Pose publicou em 2023, conjuntamente com Javier Terrero-Dávila e Neil Lee, no Journal of Economic Geography de acesso aberto, o que considero ser a expressão mais acabada da sua explicação dos “left-behind places”. Nesse artigo, articula dimensões como a desigualdade inter-pessoal, o declínio económico e o crescimento do populismo nos EUA e na Europa.

Embora, como anteriormente referi, não esteja totalmente convencido com o potencial da geografia do descontentamento para construir uma teoria geral do populismo, é inequívoco que a abordagem tem potencial, pelo menos para explicar, senão todas, algumas manifestações territoriais do populismo, com relevo para a ascensão de Trump. O reconhecimento dos “left-behind places” permite trazer para a análise dimensões novas como a evidência de que nem sempre o populismo é alimentado pelo ressentimento dos mais pobres e desqualificados. Frequentemente, a onda antissistema político vigente entra pela classe média adentro. Isso deve-se ao facto de determinados territórios, que já foram motores de crescimento e de difusão de prosperidade para todos, serem globalmente atingidos pelas transformações económicas na economia global, trazendo para a tentação populista não apenas os mais fracos mas também aqueles que vêm coartada a sua ascensão social pela perda global vivida pelo território em causa. Talvez o conceito se aplique bem ao chamado “American Rust Belt” tão do agrado das tropas de Trump, mas já tenho alguma dificuldade em aplicá-lo para explicar, por exemplo, a onda populista na Itália do Norte.

Rodríguez-Pose ganha alguns pontos quando sustenta a ideia de que o peso da desigualdade inter-pessoal na geração do populismo não compagina bem com os resultados eleitorais nas grandes aglomerações metropolitanas. Aí a desigualdade intensificou-se bastante, mas o voto dominante continua a ser em partidos do sistema e não em partidos que surfam a onda de que “se estou a afundar-me então afundemo-nos todos”. O argumento pode ser contrariado dizendo que é nessas aglomerações que se encontra a maior massa de ganhadores com a globalização (a votação em Londres no Brexit ilustra-o perfeitamente) e em que os deserdados da fortuna não pesam o suficiente para gerar implicações eleitorais visíveis.

Num outro artigo que publicou na London School of Economics Public Policy Review, Rodríguez-Pose chama a atenção para o declínio de longo prazo que se abate sobre alguns territórios, gerando um sentimento de perda e de ressentimento, não do ponto de vista da desigualdade inter-pessoal aí observada, mas do ponto de vista da perda global que esses territórios refletem.

O argumento é sedutor mas entendo que uma análise mais profunda da sua consistência nos pode colocar de sobreaviso. A identificação dos tais “left-behind places” ou “places that don’t matter” é provavelmente mais fácil em certos países (que correspondem grosso modo aos exemplos nos EUA e Europa apresentados por Rodríguez-Pose), mas a sua identificação pode revelar-se mais problemática noutros. Haverá países cuja vulnerabilidade à globalização ou às grandes transformações dos nossos tempos, tecnológicas e culturais, pode não assumir uma incidência territorial tão marcada como aqueles conceitos exigem. E há o problema desses “lugares que não interessam a ninguém” terem feito jus à sua designação e terem impulsionado um significativo êxodo demográfico em busca de ares mais promissores. Existirá aqui uma contradição: mesmo que o ressentimento pudesse apresentar uma dimensão de origem territorial a sua expressão eleitoral será já mais diminuta e seguramente não será a sua existência a determinar o crescimento em força de partidos antissistema, a expressão mais visível do populismo.

Por isso, pelo menos para as bandas da Europa do Sul, os conceitos de Rodríguez-Pose, embora tenham valor intrínseco, não me parecem suficientemente operativos para compreender a ascensão do populismo em Itália, Espanha ou Portugal.

Concentremo-nos, por exemplo, no VOX espanhol, a expressão máxima desse populismo conservador e profundamente reacionário. Terá ele uma expressão de relação com os “lugares que não interessam a ninguém em Espanha”? Não me parece de todo. A “España vaciada” gerou os seus próprios movimentos políticos e pelo que pude pesquisar apenas o movimento de Teruel tem potencial de, no próximo dia 23 de julho, manter representação parlamentar. Em contrapartida, o VOX assenta na resistência que o espanholismo franquista revelou na transição democrática espanhola, ocultando-se por largo tempo nas franjas mais retrógradas do PP, para se libertar depois e conquistar espaço próprio. O populismo do VOX é mais um problema de sistema de valores culturais retrógrados, passadistas e com laivos de fascismo “à la Franco” do que propriamente o resultado do “aggiornamento” de deserdados com localização espacial bem definida. Para o rebentamento desse populismo muito contribuiu o jogo complexo de sedução que o governo de Sánchez tem alimentado junto dos nacionalismos regionais em Espanha (Catalunha com a Esquerra Republicana, País Basco com o BILDU), que são como sabemos inimigos de estimação e figadais do espanholismo Voxiano.

O mesmo se diga em relação ao Chega em Portugal, onde também não é perfeitamente visível relação com os conceitos de Pose. A dimensão espacial que se conhece mais relevante na expansão do Chega está em alguns municípios e freguesias de forte concentração de outras etnias, designadamente a cigana, o que remete para um dos fatores da proposta de Eichengreen – a rejeição da imigração, misturada com xenofobia.


E como melhor exemplo desta inadequação das teses de Rodríguez-Pose ao populismo da Europa do Sul está o mapa acima, onde o autor faz o mapeamento espacial e político dos populismos antissistema. Se o VOX aparece a cobrir o território espanhol, em Portugal aparece o PCP-PEV a descrever a incidência do fenómeno. O que me parece um exemplo gritante de desinformação e de má aplicação de conceitos. À luz da trilogia de fatores de Eichengreen, o PCP poderá partilhar algumas vertentes do nacionalismo, mas identificá-lo com um discurso anti-elites (com a exceção do sistema financeiro) ou anti-imigração parece-me representar uma má abordagem.

Por isso, quando o primeiro-Ministro António Costa invoca hoje tantas vezes a ameaça do populismo, conviria que o seu grupo de assessores lhe explicasse bem as nuances do fenómeno. Mas ousaria dizer que os conceitos de “left-behind places” e de “lugares que não interessam a ninguém” não o vão ajudar muito nessa preparação necessária. Diria que Portugal não tem dimensão para acolher essa abordagem. Mas o debate continua e o populismo está aí a suscitar o tão badalado problema das linhas vermelhas em democracia. E não desdenharia, em próximas incursões, ensaiar a hipótese de trabalho de que a emergência do populismo político em Portugal, tardia mas efetiva, tem algo que ver com a própria perversão endógena do sistema político e partidário. Talvez não seja difícil estabelecer elos de conexão entre a última grande sondagem do Expresso sobre o que pensam os Portugueses e como está o seu nível de satisfação e esta hipótese de trabalho. A seu tempo darei conta dessa questão.

 

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