(Richard Florida, Andrés Rodríguez-Pose e Michael Storper não são autores quaisquer, são pesos pesados da economia regional e urbana. Por isso, quando publicam juntos e se dirigem com investigação própria à academia é tempo de parar e de os ler com atenção, sobretudo agora que, sobretudo através de Rodríguez-Pose, tem sido seguida uma interessante política de abertura de publicações a não assinantes e assim melhor disseminar o conhecimento em economia regional e urbana. Por isso, vale a pena dar uma olhada ao artigo de junho deste ano da Urban Studies redigido pelos três grandes. É esse o objetivo deste post.
Comecemos pela ressalva de sempre. Apesar da investigação dos três grandes ser um farol, a verdade é que ela é contextualmente determinada pelas experiências das cidades mais avançadas. Este facto provoca um enorme desafio a quem se atrever a analisar questões desta natureza em economias de nível de desenvolvimento intermédio como Portugal, obviamente com as consequências esperadas em termos de estrutura e magnitude urbanas. Os desafios são dois. O primeiro cabe à academia portuguesa responder: com inspiração no trabalho dos “Grandes” há que desenvolver modelos de análise que contextualizem a estrutura urbana portuguesa e/ou a dos restantes países europeus do Sul, mas neste âmbito há especificidades nacionais. Talvez seja ainda cedo para a investigação portuguesa publicar resultados sobre as cidades pós-COVID, a nossa produção é mais lenta, a sua internacionalização em revista de ranking elevado é-o ainda mais e, por isso, é possível que estejamos limitados a quem tenha a fortuna de trabalhar próximo ou com esses “Grandes”. Veremos. O outro desafio, e esse é o plano em que coloco este post, é o de refletir criticamente sobre o que a investigação de Florida, Rodríguez-Pose e Storper nos oferece e refletir também criticamente sobre estruturas urbanas mais próximas da nossa.
O artigo dos três “Grandes” começa por analisar o que o COVID-19 e o combate a ele dirigido nos trouxeram do ponto de vista da chamada geografia dos impactos, com o alerta importante que em nenhuma outra situação no passado uma pandemia tinha sido observada num contexto de tanta conectividade e tanta circulação de pessoas. Fazem-no com uma grande abertura de espírito, recordando-se, por exemplo, do erro tremendo que os anos 80 nos trouxeram, avançando que a distância e a proximidade perderiam força com o advento tecnológico de então: “paradoxalmente, as mais eficientes tecnologias de transporte e de telecomunicações geraram novas formas de interações de rotina, estimulando o aparecimento de modernas formas colaborativas que exigem interações “face-to-face”. É fundamentalmente por isso que, através da história, as grandes cidades recuperaram da devastação provocada por pandemias e muitos outros tipos de crises e catástrofes” (Florida, Pose e Storper: p.2).
Os autores analisam quatro tipos de forças através das quais a pandemia impactou os territórios e das cidades em particular: o medo social que pode influenciar vários comportamentos económicos; a experiência forçada do confinamento em domínios como o emprego, o consumo, a relação casa-trabalho, as escolhas residenciais; a proteção do edificado face a pandemias e as mutações na forma urbana, quer da construção residencial quer da rua e do espaço público.
A análise desenvolve-se sempre numa dupla direção, ao nível do que chamam a escala macrogeográfica, envolvendo as grandes Cidades, as cidades-Região e outras megaurbes e a uma granularidade mais fina, designadamente as relações entre as zonas centrais e suburbanas. Alguns resultados da investigação realizada confirmam grandes ideias que vieram a público em plena pandemia do tipo: (i) grande influência da conectividade, seja ela global ou específica de pequenas comunidades turísticas como as zonas de esqui, para explicar os números mais devastadores da pandemia em termos, por exemplo, de excesso de mortos; (ii) a influência do tipo de densidade urbana, seja por exemplo a de densidade de emprego versus densidade residencial ou do tipo de trabalho (os que não puderam usar o escape do trabalho remoto; (iii) grande relevo das desigualdades sociais, com a regra básica de que foram os grupos sociais e os lugares mais desfavorecidos na escala social que foram mais atingidos. Os autores concluem de modo relevante que foi essencialmente a estrutura das interações e não propriamente a estrutura física urbana a explicar a disseminação dos efeitos mais gravosos.
Olhando para as consequências futuras, ou seja, o que é o COVID-19 nos vai trazer em termos de grandes mudanças urbanas, os autores são convincentes na ideia de que, ao nível da macroescala urbana internacional, a pandemia não gerou efeitos suficientemente determinantes para contrariar os grandes trends urbanos da economia global, mesmo admitindo a disrupção de algumas formas de globalização. Os resultados são mais matizados quando se coloca a análise urbana a um nível mais granular. Aí a lógica dos comportamentos dos cidadãos empregados e residentes pode obedecer a matizes mais alargados: o receio das concentrações e do contágio, vivendo em apartamentos mais pequenos, pode suplantar as vantagens percebidas da vivência do centro da Cidade; os mais qualificados e mais jovens poderão continuar a preferir a aglomeração, depois de um êxodo temporário para zonas de menor densidade de emprego e residencial. Por sua vez, os efeitos de longo prazo dos confinamentos são mais indeterminados, já que as avaliações das vantagens atribuídas ao trabalho remoto dependem fortemente dos tipos de trabalho: “para um grande grupo, fortemente sensível ao contacto e de trabalho baseado no conhecimento, tais como o ensino, o entretenimento, o networking, a conservação das convenções, o trabalho remoto é um substituto pobre do presencial”.
É óbvio que os centros de cidades mais tradicionais poderão experimentar grandes perdas e transformações, dando origem a processos de substituição por exemplo de comércio por atividades de lazer. E uma grande competição sobre a atração do trabalho remoto pode emergir e trazer às dinâmicas urbanas. Os autores destacam o potencial de crescimento de cidades intermédias, com alguns hubs tecnológicos e centros universitários e uma cultura mais cosmopolita podem beneficiar dessa competição. Referem assim que as economias de aglomeração associadas a atividades intensivas em conhecimento e à criatividade não têm distribuição generalizada, penalizando designadamente áreas mais rurais em termos de atração de trabalhadores remotos. E a sua conclusão de que o trabalho híbrido irá intensificar-se já não é propriamente uma novidade.
O que parece importante salientar é que os autores se posicionam num contexto de ampla e forte experimentação social induzida pela pandemia, não invalidando que as grandes leis da concentração urbana à escala global tendam a permanecer.
Com base nestas ideias centrais, um sobrevoo sobre a estrutura urbana portuguesa é possível, mas isso implica um outro fôlego, um ou mais posts serão necessários.
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