quinta-feira, 29 de junho de 2023

ESCREVE QUEM SABE

 


(João Costa Pinto pertence a uma geração de economistas anterior à minha, que tem mantido desde os velhos tempos em que se destacou intelectualmente na Faculdade de Economia do Porto a mesma constante de sobriedade, profissionalismo, sensatez e sentido crítico das coisas. Numa linha permanente de independência face a quaisquer grupos de pressão, a sua experiência da banca portuguesa é um exemplo notável de persistência de valores de rigor e de contributo para a literacia financeira dos Portugueses. O seu artigo no Público sobre a questão potencialmente incendiária das taxas de remuneração de depósitos mantidas pelos bancos abaixo dos valores sugeridos e antecipados na política monetária restritiva atualmente seguida e ainda ontem reafirmada pelos bancos centrais, incluindo o BCE, é em meu entender dos contributos mais lúcidos para uma discussão desapaixonada e sobretudo fundamentada da questão acima indicada. Curiosamente, o artigo de JCP é publicado simultaneamente com a divulgação de uma afirmação pública do Presidente da Assembleia da República sobre a mesma matéria que não contribui nada para fortalecer a literacia financeira dos Portugueses.)

A perspetiva que JCP nos oferece é muito simples, bastante clara, mas não deixa de ser por isso um dos contributos mais positivos e de maior alcance que registei na comunicação social sobre esta matéria.

O economista começa por relembrar que a importância do sistema bancário no sistema financeiro europeu não tem comparação possível com o que se regista no mundo anglo-saxónico. Neste último, a intermediação financeira atingiu níveis de sofisticação e diversificação que tende a reduzir o papel do sistema bancário na intermediação exercida pelo sistema financeiro. Esta constatação, à qual podemos associar níveis de agilidade e flexibilidade que, regra geral, o sistema bancário não oferece, tem também a contrapartida da sua ação tender a complicar os mecanismos de transmissão da política monetária, quando os bancos centrais aumentam as taxas de juro de referência.

Quer isto significar que, na realidade europeia, tal como o sublinha JCP, os bancos não se limitam a assumir a função de “coluna vertebral” do sistema financeiro, sendo também o principal canal de transmissão da política monetária. Mas convém não ignorar que, regra geral, os bancos são entidades privadas, com as suas próprias estratégias de mercado e que os executores da política monetária, os bancos centrais, não dispõem de mecanismos de vinculação autoritária que lhes permita obrigar os bancos a assumir o comportamento desejado. A política monetária faz-se de instrumentos que são essencialmente incentivos para modelar as decisões dos bancos no sentido desejado, neste caso atual procurar arrefecer a economia e assim ir retirando combustível à propagação da inflação. Mas como o referi em post anterior, esse principal mecanismo de transmissão da política monetária enfrenta constrangimentos e limitações importantes, um dos quais consiste em admitir que os bancos reagem aos incentivos desenhados do modo pretendido.

JCP destaca um elemento de análise que tenho visto muito deficientemente assumido no debate público. As condições atuais prevalecentes no sistema bancário europeu, e o português não é exceção a esse padrão, são muito pouco favoráveis à concorrência interbancária pela procura de depósitos. O período anterior da política monetária inundou o mercado de liquidez, num contexto estranho, referido no meu último post e inspirado nos contributos de Richard C. Koo, em que a escassez de pedidos de novo crédito era notória. Assim sendo, neste contexto desfavorável à concorrência por depósitos, a lógica de mercado determinará que a banca tenderá a conservar, até à última, os diferenciais de taxas de remuneração de depósitos. Além disso, discutiu-se pouco em Portugal as implicações suscitadas nos balanços dos bancos pela subida das taxas de juro, reduzindo o valor de alguns ativos bancários.

JCP é particularmente lúcido quando coloca o dedo na ferida principal: “Quando tal não acontece e os bancos aumentam menos a remuneração dos depósitos, enfraquecem o impacto sobre a procura, enquanto alargam a sua margem financeira. Objetivamente, absorvem no seu balanço uma parte do efeito macroeconómico pretendido pelo BCE, reduzindo a eficácia global da política monetária”. E diria eu, com esse comportamento, compensam em parte as perturbações de balanço induzidas pela subida das taxas de juro.

Mas JCP vai mais longe e identifica o que em seu entender é o padrão dominante de alocação do crédito bancário: “procuraram os segmentos do mercado de crédito com menor custo de capital e em que, tradicionalmente, desenvolveram modelos mais eficazes de avaliação e controle do risco”, ou seja, com relevo do crédito ao consumo, turismo, habitação e construção.

E é nesta deriva que entroncaria a afirmação aparentemente descontextualizada de Augusto Santos Silva, segundo a qual a banca arriscaria pouco. Convém separar as águas e recordar que exigir à banca comportamentos de avaliação de risco de crédito típicas do capital de risco e de outras formas de financiamento da inovação constituirá sempre um erro trágico. A banca não tem decididamente uma cultura de crédito ajustada ao risco inovação e à disrupção de base tecnológica. A política pública já tentou ir por aí para contornar a pasmaceira do nosso mercado de capital de risco mas deu-se mal.

Mas o que me parece relevante retirar da análise crítica de JCP é a crítica inequívoca ao apelo de boas intenções, protagonizado por exemplo pelo incorrigível Marcelo, pedindo aos bancos que se comportem como protetores da poupança dos portugueses e aumentem lá um bocadinho as remunerações dos depósitos bancários.

É de efetividade de mecanismos de transmissão da política monetária que estamos a falar e não de votos de uma qualquer irmandade com fortes preocupações sociais. E são, por isso, os senhores da política monetária que a deverão exercer procurando criar condições de regulação que determinem o comportamento desejado dos bancos. Reconhecer os problemas de transmissão dos efeitos da política monetária não significa apenas aliviar a consciência de “falcões e pombas” no desenho da política monetária. Atuem, pelo contrário, na criação de condições para mitigar essas dificuldades de transmissão. É isso que se exige a um regulador e não apenas a subserviência a um conjunto de ideias feitas.

 

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