quinta-feira, 22 de junho de 2023

UMA OUTRA FORMA DE OLHAR PARA A ECONOMIA PORTUGUESA


(A compreensão rigorosa de qual é o efetivo conteúdo de melhoria da economia portuguesa, agora que o modelo de alocação de recursos que a caracteriza parece definitivamente girar em torno dos transacionáveis, continua a ser fator de controvérsia e a animar a mobilização da inteligência nacional. Em todo este processo, cabe salientar o papel que tem sido exercido por Fundações como a Francisco Manuel dos Santos e a José Neves, financiando contributos do que de melhor temos na investigação económica e sociológica em Portugal e concedendo a tais testemunhos condições de divulgação que a investigação académica não tem manifestamente à sua disposição. Centro-me, hoje, na publicação do Estado da Nação de 2023, reportado ao ano de 2022, por parte da Fundação José Neves. Começo por um registo de conflito de interesses. O meu filho mais velho, Hugo Figueiredo, professor na Universidade de Aveiro, integra uma das equipas mobilizadas pela Fundação José Neves para o trabalho em causa. O modelo de colaboração é interessante. A equipa de investigação realiza o trabalho de base e esse conteúdo de investigação é depois trabalhado pela editora da Fundação, transformando-o em algo de apelativo para o leitor.)

O meu interesse no já referido Estado da Nação da FJN está no potencial que o estudo apresenta em nos proporcionar um outro olhar sobre a economia portuguesa, completando e sobretudo diversificando os olhares que nos poderão conduzir a um conhecimento mais rigoroso do conteúdo efetivo da melhoria em curso, aberta pelo caminho dos transacionáveis (o já referido peso das exportações no PIB superior a 50%). O outro olhar a que me refiro é aquele que se centra na análise da evolução do emprego, das qualificações, das competências e do modo como as empresas vão reagindo à melhoria de contexto em termos de qualificações. O Relatório deste ano apresenta ainda um outro interesse. Avança bastante pelos caminhos da digitalização em curso na economia portuguesa. E, pela primeira vez, dispomos de informação rigorosa que nos permite ir além do blá-blá em termos de transformação digital. Não é coisa pouca, pois a transformação digital corre o risco de se transformar naqueles processos em que a sociedade portuguesa é por vezes viciada. Adere com entusiasmo às modas europeias, designadamente tecnológicas, mas, manifestamente, tem extrema dificuldade em ir além disso e construir um conjunto coerente de instrumentos de política que dê sequência e concretização ao slogan, tão popular entre os palradores da política, especializados nos mais sofisticados “power-points”.

É indiscutível que, do ponto de vista dos fluxos de novas qualificações que chegam ao mercado de trabalho, a economia portuguesa tem sido impactada favoravelmente. Tomando como referência os jovens diplomados pelo ensino secundário e superior, em cada 100, 78 estavam empregados em 2022, já perto dos 81,5% na média da União e ainda longe dos 5 países melhor situados nessa escala (91,3%). Globalmente, apenas 44% do emprego era concretizado em setores tecnológicos e intensivos em conhecimento, com uma trajetória evolutiva lenta mas positiva e revelando ainda, conforme o número o revela, um elevado potencial de progressão. O relatório fala, entretanto, de desajustamentos entre educação e emprego, com sub-utilização de competências adquiridas. O problema das médias ou de quem lidera a União Europeia atravessa todo o relatório e, por exemplo, se é verdade que a percentagem de adultos com participação em formação supera já a média europria (13,8% contra 11,9%), está ainda bem abaixo da percentagem dos 5 países europeus de topo (27%). Sou dos que penso que a ambição nacional não deve ser a média da União, que é uma pura abstração. O nosso referencial de ambição deve ser o topo, esse bem real e concreto e não a média. O mesmo se diga quanto aos jovens com formação superior (44,4% em Portugal, 42% na União e 59% nos 5 países de topo).

Não irei dedicar muito tempo à questão salarial já muito divulgada na comunicação social. A moderação salarial continua a não retribuir suficientemente a melhoria de qualificações e competências e a inflação veio representar um rude golpe nas retribuições reais. Também não vale a pena dedicar muito tempo à queda do prémio salarial de mais formação. O prémio da formação superior é ainda elevado, sobretudo nos mestrados, mas está em queda, o que não espanta ninguém e é habitual quando os fluxos de novas qualificações superiores aumentam significativamente, ainda por cima num contexto em que a produtividade continua a penalizar a magnitude das melhorias salariais.

A matéria a que gostaria de dedicar a parte final da recensão do Estado da Nação da FJN é a respeitante à transformação digital, sobretudo porque o ano de reporte do relatório, 2022, já integra o pós-pandemia e isso, nesta matéria, faz toda a diferença. As ofertas de emprego em 2022 apresentavam já uma percentagem de competências digitais de 66% (pelo menos uma competência digital), já superior ao pré-pandemia (54%). E, em termos de competências solicitadas em ofertas de emprego, 28% respeitavam já ao uso de tecnologias de informação e comunicação. O que está em linha com o inquérito do CEDEFOP (2021), segundo o qual 50% dos portugueses referia usar após a pandemia mais tecnologias digitais.

O relatório conclui ainda que a última década nos revela que o emprego em Portugal é mais digital, mas não se atravessa quanto à possibilidade de se tratar de uma mudança estrutural irreversível. Mais anos após a pandemia serão necessários para o compreender.

Do ponto de vista estrutural, desindustrialização e terciarização da economia surgem claramente associadas ao avanço da digitalização, mas esta não domina de todo as dinâmicas do emprego, daí a indeterminação estrutural ainda observada. O que parece indiscutível e que está em linha com a investigação académica de economistas americanos como David Autor, é que as profissões digitais e menos rotineiras serão o campo fértil para o avanço da digitalização, trazendo consigo a sub-representação dos trabalhadores menos qualificados e das mulheres. A sub-representação das mulheres é um dos fatores que me causa mais perplexidade e que evidencia bem o elevado potencial que a sociedade portuguesa apresenta do ponto de vista da digitalização.

O relatório é bastante inovador quando elabora um índice de digitalização das empresas, que é um indicador compósito de dimensões como a utilização de computadores e outros equipamentos digitais, o acesso à internet e a redes por parte dos trabalhadores, a existência de funcionalidades associadas a essa participação, o volume de negócios online e o uso de software e hardware mais avançado. Com este índice, o relatório conclui que 48% das empresas nacionais apresenta ainda um baixo nível de digitalização.

O estudo espraia-se ainda por ganhos associados à digitalização, como por exemplo a produtividade e o nível de salários pagos, mostrando que para empresas com características similares. O setor de atividade e a dimensão da empresa influenciam decisivamente o nível de digitalização empresarial, bem como a produtividade e as qualificações de gestores e trabalhadores.


E uma conclusão a que regressarei noutra ocasião traz-nos algo de essencial do ponto de vista da conceção dos modelos de formação: a transformação digital exige outras competências além das digitais. Não resisto neste caso a citar: “as tecnologias e competências digitais tendem a ser complementares a outras competências, sendo por isso redutor considerar que o desenvolvimento de competências digitais será suficiente, quer para impulsionar a digitalização quer para os indivíduos lidarem com esse processo. Se para alguns adultos será suficiente desenvolver competências digitais para colmatar fossos de competências específicos, é importante reconhecer que para muitos outros poderá ser necessária uma abordagem mais alargada, que contemple um leque de competências necessárias para trabalhar com equipamentos digitais, mas também para executar outras tarefas complementares e mais complexas”.

 

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