quarta-feira, 21 de junho de 2023

A GEOGRAFIA DO DESCONTENTAMENTO ATACA DE NOVO …



(Ainda e sempre sob a supervisão científica de Andrés Rodríguez-Pose, mas agora com a chancela editorial da Comissão Europeia, mais propriamente da Direção-Geral da Política Regional e Urbana, o geógrafo espanhol, em colaboração com Lewis Dijkstra e Hugo Poelman, acaba de publicar “The geography of EU discontentand the regional development trap”, sob a forma de um Working Paper, o terceiro de 2023. O trabalho em curso agora publicado tem essencialmente duas virtudes: permite, por um lado, quantificar mais precisamente o chamado euroceticismo, interpretado como uma das manifestações possíveis do descontentamento popular, distinguindo entre o euroceticismo mais duro (hard eurocepticism), e o mais suave (soft eurocepticism), que alarga os critérios para a sua quantificação; por outro, o trabalho ensaia o estabelecimento de conexões entre essa forma de descontentamento e os processos de armadilha do desenvolvimento regional (regional development traps) que emergiram no último Relatório da Coesão e a que a Comissária Elisa Ferreira tem concedido a devida notoriedade não só do ponto de vista geral, mas também na perspetiva da sua aplicação a Portugal.)

Quer isto significar que a publicação da Comissão Europeia suscita essencialmente três tipos de questões.

Primeiro, com créditos substanciais a favor da abordagem da equipa de Rodríguez-Pose, é sempre relevante registar a geografia do euroceticismo europeu e medir o pulso com rigor ao fenómeno da expressão eleitoral dos partidos antissistema. O artigo concretiza essa função a contento e com a sua publicação temos acesso a um cruzamento de fontes que nos traça com rigor o adensamento do fenómeno ao longo do tempo. Por exemplo, na sua versão mais lata, incluindo o euroceticismo mais “soft”, o peso eleitoral é calculado em 27% para o ano de 2022. Ou seja, já não dá para ficar indiferente e deixar marinar. A componente mais dura e agressiva é estimada em 14% do eleitorado também para 2022.

A segunda questão colocada pelo artigo é o próprio conceito de “regional development trap”. Os autores retêm sobretudo o caso de regiões (e países) que viveram períodos de crescimento económico algo rápido que lhes permitiu atingir níveis intermédios de rendimento per capita e de produtividade, mas que não lograram a partir daí melhorar a sua situação, permanecendo estagnados nesse meio, designado de armadilha do desenvolvimento. Tal como a Comissária Elisa Ferreira o tem referido, esses casos de surtos de crescimento podem ter origens diversas, como por exemplo o aproveitamento dos primeiros benefícios do mercado interno europeu após a adesão, o esforço de modernização infraestrutural que os Fundos Estruturais viabilizaram ou a capitalização de surtos de desenvolvimento turístico, mas que atingido que está esse patamar intermédio, as regiões em causa sentem dificuldades em entrar em trajetórias virtuosas de eficiência dinâmica global, abrindo mais frentes de inovação e explorando novas fontes sustentadas de crescimento. As razões para algumas regiões permanecerem nessa armadilha de desenvolvimento e outras regiões conseguirem superar essa estagnação não têm para já uma teoria geral convincente, pois podem estar misturados fatores de natureza muito diferente. Pode ser o facto da especialização produtiva das regiões ter ganhos potenciais de crescimento da produtividade relativamente limitados. Por exemplo, regiões têxteis, de vestuário e calçado, modernizado plenamente que esteja o equipamento, enfrentam ganhos incrementais de produtividade relativamente limitados, a não ser que trabalhem em faixas de preços de topo. Podemos estar também perante regiões cujo declínio demográfico (e suas consequências na formação de nova capacidade empresarial) rebaixam significativamente o seu produto potencial e dessa maneira limitam o crescimento. Ou em alternativa assentarem em atividades industriais subitamente desvalorizadas por uma mudança tecnológica disruptiva que as deixa fora do mercado. Ou ainda porque a especialização turística não permite acolher níveis de eficiência global dinâmica muito elevada.

Ou seja, o conceito de “regional development trap” está batizado, indo ao velho baú da economia do desenvolvimento procurar os seus fundamentos, mas encontra-se ainda longe de estar plenamente trabalhado. Podemos aceitar a ideia de que a armadilha não é mais do que o estado de uma região que se mostra incapaz de de conservar o seu dinamismo económico em termos de rendimento, produtividade e emprego, ficando aquém da dinâmica global europeia. Mas a própria política regional europeia não pode passar ao lado de uma outra observação, que apresento na interrogativa: será que este tipo de regiões tem podido usufruir dos instrumentos de política mais apropriados para o seu estádio de desenvolvimento? Ou será que tem sido obrigadas a competir abertamente pelo apoio de instrumentos mais direcionados para a fronteira do desenvolvimento europeu? Ou ainda interrogado de outra maneira: será que o portfólio de instrumentos de política comunitária é concebido de modo a ter em conta a diversidade de estádios de desenvolvimento em que as suas regiões se encontram? Como vemos, penso que as próprias autoridades comunitárias ainda não trabalharam com suficiente profundidade as implicações do conceito de armadilha de desenvolvimento para avaliação das suas próprias políticas.

A terceira questão que o artigo desperta é a identificação dos mecanismos que permitem associar a armadilha do desenvolvimento ao euroceticismo. Registam-se esforços sensíveis de evoluir nessa direção, concluindo designadamente que o declínio económico relativo (a diferença em relação ao outro) se torna um fator mais importante de aceleração do descontentamento do que propriamente o nível de desenvolvimento absoluto. Sabemos que o aumento da prosperidade europeia foi desigual e que, nas condições de livre circulação de força de trabalho, os gaps salariais estão aí como a principal evidência de que esses ganhos não foram equilibrados.

Depois, o artigo trabalha também o problema da intensidade do gap de desenvolvimento e a duração da estagnação, o que constitui um avanço na explicação dos mecanismos de identificação do euroceticismo, duro ou suave, com a armadilha do desenvolvimento.

Mas a procissão talvez ainda não tenha saído do adro.

Continuo a pensar em Portugal e Espanha, com a emergência do Chega e do Vox como expoentes do ceticismo europeu, já que o ceticismo europeu do PCP e do Bloco radicam noutras origens, claramente mais ideológicas. Conseguirei estabelecer alguma relação causal entre o crescimento do Chega e do Vox com a armadilha do desenvolvimento de regiões portuguesas e espanholas? Esforço-me, mas não consigo.

 

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