terça-feira, 13 de junho de 2023

O ESTADO DA POLÍTICA ATRAVÉS DOS OBITUÁRIOS

 


(A repercussão mediática da morte de Berlusconi é, em meu entender, uma fiel representação do estado a que chegamos em matéria de prática política. Quando um personagem do calibre e facetas menos claras como o político italiano consegue esta ampla cobertura com a sua morte e sobretudo “enternece” grande parte do comentário político que a ele se referiu isso diz mais e melhor do que qualquer ensaio de ciência política pode alcançar para melhor descrever o personagem. Cá por mim, nada convencido com essas modernices de que novos rumos para a política foram abertos, continuo fiel a Nanni Moretti, com o seu Il Caimano estreado em Portugal em 2007 e que continuo a considerar como uma das desconstruções mais efetivas do personagem. Porque, em verdade vos digo, que Berlusconi conseguiu reunir em si próprio o que de mais lamentável e sórdido uma personagem política pode congregar: o mundo obscuro das ligações entre o futebol e a política, o controlo dos media em seu próprio proveito político, a fuga constante à lei, a degradação mais sórdida dos costumes, o aviltamento da condição humana. Quando uma personagem deste calibre “desaparece por cima” e em alta, estamos entendidos quando ao real estado da política. Outra coisa mais complexa é compreender a recetividade que a sociedade italiana lhe concedeu, aliás na linha do que conduziu ao poder uma coligação de extrema-direita.)

A reação e cobertura mediática à morte de Berlusconi asseguram, inequivocamente, ao personagem a sua derradeira vitória política. É como se Berlusconi tivesse preparado ao milímetro a evolução dos media para compreender os seus desígnios e registar na sua morte o alcance do seu modo de fazer política. Vitória retumbante, pois lendo tudo o que tem sido publicado o seu contributo para a transformação da política sobrepõe-se claramente ao que de pior a sua personalidade e experiência foram acumulando ao longo do tempo.

Numa crónica equilibrada, aliás como sempre, de Jorge Almeida Fernandes no Público, o jornalista invoca a feliz síntese do diretor do La Repubblica, Enzo Mauro:” Uma vocação de direita, paternalista mas feroz, com um sorriso nos lábios. Com o objetivo oposto ao da Democracia Cristã, que drenava os interesses da direita devolvendo-os ao centro, o Cavaliere captava os hábitos centristas e moderados da sociedade italiana e convertia-os à direita, radicalizando-os.” Fez um pacto com o povo: “O Estado deixa-vos livres para regular os vossos interesses como queiram [em troca dos vossos votos.]

Ainda na mesma crónica, JAF recorda a célebre máxima de Berlusconi para explicar a sua entrada na política: “Ou eu entrava na política, ou acabava na cadeia.” Não é possível ser mais cristalino, sobretudo se pensarmos que o suborno de juízes fez parte do modelo de ascensão.

O artigo de Almeida Fernandes é um belo documento explicativo para a popularidade e recetividade que a sociedade italiana lhe dedicou. Através de várias referências, consegue-se perceber que a razão principal é a profunda identificação de Berlusconi com características sociológicas profundas dos italianos. O desprezo pela degradação da política é uma dessas identificações, tanto mais espantosa quanto Berlusconi era também ele um personagem desse mesmo circo. Depois há a aversão dos italianos por regras quaisquer que elas sejam e aí temos uma identificação profunda entre o personagem e os seus apoiantes.

Coerente com o seu princípio de que manobrar politicamente era a sua praia e governar a mais profunda chatice, cabe dizer que Berlusconi está na base da evolução política italiana mais recente. Sem o seu apoio e influência não teria havido certamente o governo de Draghi, a ele se devem também a sua queda e a passadeira vermelha ao governo de extrema-direita.

Já compreenderam que se toda a reação mediática à morte de Berlusconi fosse da qualidade do artigo de Jorge Almeida Fernandes este post não teria justificação. Mas não foi a regra, antes a exceção.

 

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