(Este blogue tem dedicado imensa atenção à vasta produção do economista Branko Milanovic, ao qual se deve essencialmente o desenvolvimento assinalável de investigação e evidência sobre o que designamos de desigualdade a nível mundial. Como veremos neste post, sugerido por um artigo do economista sérvio publicado no Foreign Affairs, 14 de junho de 2023, que se segue a um outro de agosto de 2020 na mesma revista, é hoje possível compreender melhor a evolução da desigualdade no mundo, como se os cidadãos não tivessem país, apenas rendimentos comparados compensando a diferença de preços relativos. Uma questão central pode ajudar a antecipar o interesse desta reflexão: pode a desigualdade estar a aumentar no interior dos países e, simultaneamente, diminuir a desigualdade entre os cidadãos do mundo? A resposta é simples: pode acontecer e aconteceu de facto nas duas últimas décadas, mas nada nos garante que essa coexistência possa continuar, sabendo nós que as perspetivas para a desigualdade no interior dos países as perspetivas são péssimas.)
Milanovic farta-se de publicar nova evidência de investigação, sobretudo a partir do momento em que passou a integrar os quadros do Stone Center on Socio-Economic Inequality da Universidade de Nova Iorque, onde o estudo do tema da desigualdade se destaca.
A obra de Milanovic diferencia-se sobretudo pelo facto de ser dos primeiros a combinar evidência já longa sobre desigualdade no interior dos países e entre países com informação mais recente sobre desigualdade mundial, comparando apenas rendimentos à paridade de poder de compra dos indivíduos.
A questão redobrou de interesse quando, nas duas últimas décadas, se começou a falar de grande convergência de rendimentos à escala mundial, o que gerou o que gosto de designar de paradoxo da desigualdade: afinal, sobretudo nas economias mais avançadas, a desigualdade intensificava-se e afinal a nível mundial a convergência de rendimentos era manifesta?
Claro que a grande responsável por este paradoxo e pela convergência mundial de rendimentos foi a mal-amada China. De facto, com os seus níveis exorbitantes de crescimento económico, a China fez crescer imenso os rendimentos transversalmente dos vários grupos da população chinesa e a sua enormidade demográfica fez o resto. Milhões e milhões de pessoas foram retiradas da pobreza e pela primeira vez os mais ricos do Ocidente viam emergir na China os seus equivalentes, disputando com eles o modelo de consumo associado aos percentis mais elevados da distribuição do rendimento.
Milanovic interroga-se sobre se a Índia poderá o ser o motor que se segue, assegurando ritmos de crescimento similares e retirar da pobreza massas imensas de população empobrecida. Não é seguro que tal aconteça. O modelo indiano enfrenta constrangimentos sérios que o autoritarismo político chinês contornou. A Grande Convergência das duas últimas décadas pode ser um paradoxo episódico. Sabemos, porque Milanovic o documentou, que a desigualdade mundial evoluiu desde 1820 de modo bastante diverso e que as duas últimas décadas foram uma aragem promissora em termos de convergência mundial de rendimentos. Em vinte anos apenas, o indicador de desigualdade mundial medido pelo coeficiente de GINi desceu 1º pontos percentuais, de 0.7 para 0.6, o que é uma enormidade evolutiva para tão pouco tempo.
Há quem continue a desvalorizar a desigualdade a nível mundial e se concentre apenas na desigualdade entre países e no interior dos países, como se a desigualdade mundial não tivesse implicações nos comportamentos. Mas Milanovic ajuda-nos a pensar melhor. De uma época em que os grupos com rendimentos mais baixos nos países mais avançados ocupavam lugares cimeiros na distribuição mundial do rendimento passámos a uma outra em que esses grupos de rendimento mais baixo já não podem orgulhar-se da sua hierarquia de rendimento a nível mundial. A ultrapassagem dessa situação por população asiática é inequívoca. Mas se a China foi responsável por esta convergência, ela partilha a situação de agravamento da desigualdade no seu interior com outras economias avançadas. O paradoxo adensa-se. O exemplo de Milanovic é curioso: entre 1988 e 2018, os italianos situados no último decil viram a sua posição mundial degradar-se cerca de 20 percentis. E o mesmo se aplica ao segundo e terceiro decil mais baixos, que degradaram a sua posição mundial em seis e dois percentis, respetivamente. A conclusão do economista sérvio parece-me perfeita: “Os países ocidentais integram crescentemente pessoas que pertencem a partes muito diferentes da distribuição global do rendimento. Diferentes posições de rendimento global correspondem a padrões de consumo muito diferentes e esses padrões são influenciados por modas globais. Como resultado disso, o sentido de desigualdade crescente nos países ocidentais pode ainda tornar-se mais vincado à medida que as suas populações pertencem, em termos de níveis de rendimento, a partes muito distintas da hierarquia de distribuição do rendimento global”.
Será que esta evidência contribui para a geografia do ressentimento no ocidente?
É uma boa questão.
Para já interessa avaliar se o papel da China na convergência mundial de rendimentos vai ter sucessor. Já falámos da Índia e dos seus constrangimentos para o assumir. O mais surpreendente é que o impulso mais decisivo para aguentar esta convergência mundial pode vir da África. Sim, é verdade. Basta pensar no que poderia significar de redução da pobreza absoluta a generalização do crescimento económico em África. Entretanto, por agora, os mais ricos do ocidente podem ter por certo que não estarão sós no topo da hierarquia mundial. Será que isto tem alguma coisa que ver com as fricções entre os EUA e a China?
Outra boa questão.
Espera-se com expectativa a publicação da nova obra de Milanovic - Visions of Inequality: From the French Revolution to the End of the Cold War.
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