quinta-feira, 8 de junho de 2023

TESTIMONIO

 


(A editora Alizanza Editorial acaba de publicar a última obra do sociólogo Manuel Castells, que tem marcadamente um cunho pessoal – “Testimonio – Viviendo Historia” - na qual é resumida toda a sua espantosa vivência de mundo, com o seu especial talento de apreender o que vai mudando na tecnologia e na sociedade à medida que o tempo percorre o seu curso. À medida que folheio o livro, e ele lê-se com uma inequívoca facilidade, não posso deixar de me interrogar sobre um paradoxo, do qual já me tinha apercebido, mas que é agora reforçado com a experiência de Castells. Homens e mulheres com esta vivência, sabedoria e criatividade de pensamento tendem a passar, não direi praticamente desconhecidos pelo exercício da política, mas seguramente com resultados francamente abaixo das expectativas que a sua vivência, sabedoria e criatividade permitiriam antever. O que significa que o exercício do poder tem mistérios que nem os mais capazes conseguem superar.)

Se há intelectual e académico que transborda vivência histórica e de mundo, Manuel Castells é seguramente um dos que mais faz jus a esse estatuto. Muitos de nós deliciaram-se com a trilogia “A Era da Informação”, cuja leitura atenta nos permitiu avançar com as primeiras abordagens do vasto universo de implicações que as tecnologias de informação e comunicação tenderam a provocar nas sociedades contemporâneas. Intelectuais como o Professor Gustavo Cardoso do ISCTE foram em Portugal intérpretes mas também continuadores e aplicadores dessa abordagem.

A obra agora publicada traz para as páginas de cunho pessoal uma mundividência complexa e diversificada que vai do Maio de 68 e das revoluções latino-americanas, à revolução de Silicon Valley (hoje tão badalada por outros motivos), ao movimento lésbico e gay de São Francisco, à aventura sul-africana, à emergência da China e à pandemia.

É, por isso, uma obra curiosa pois nos permite compreender como é que tais vivências foram essenciais para forjar a abordagem de Castells às sociedades contemporâneas, com uma característica que é muito difícil ver replicada noutras experiências pessoais. De facto, a vivência percorre uma heterogeneidade espantosa de geografias, de modelos e universos culturais, de níveis de desenvolvimento socioeconómico. Muito pouca gente teve esta capacidade (e oportunidade) de testar e enriquecer uma abordagem num conjunto tão variado de evidências históricas e geográficas.

Comparada com a experiência governativa de Castells no Governo de Pedro Sánchez, assumindo em 2020-2021 o cargo de Ministro das Universidades, esta mundividência esmaga completamente a experiência do exercício do poder. Não é o primeiro caso e nem será seguramente o último. Pode dizer-se que a passagem de Castells pela experiência governativa não deixa rasto que se veja.

Aparentemente há contradição, porque a mundividência de Castells deveria ser impactante na reformulação das universidades espanholas, alinhando-as com o tempo de mudança que o sociólogo viveu de perto. Mas se pensarmos bem, essa contradição não existe. O tempo do exercício do poder e o tempo da mudança académica não estarão nunca em conformidade com o tempo e diversidade da experiência de intelectuais como Manuel Castells.

Por isso, deliciemo-nos com a descrição dessa vivência e consideremos a sua passagem pelo Governo como um epifenómeno sem relevância.

 

Sem comentários:

Enviar um comentário