segunda-feira, 5 de junho de 2023

A POLARIZAÇÃO AMERICANA E O MERCADO

(A imagem que abre este post foi publicada pelo Economist no início deste mês de junho, ilustrando um curioso e perturbador artigo da revista, com origem em correspondentes em Washington, versando o não menos perturbador tema de saber em que medida a grave e crescente polarização política e social americana está a influenciar a organização do mercado, como que prosseguindo a ideia de construir uma economia paralela em linha com os valores do conservadorismo retrógrado que capturou o Partido Republicano. A imagem que reproduz um Trump Rambo com a rede de comunicações Patriot Mobile, uma rede conservadora radical e cristã, por detrás dá o mote da perturbação. Se já nada nos admira que possa brotar da América mais profunda, esta ideia da polarização do mercado ditada pelo conservadorismo em crescendo ultrapassa tudo o que víramos até ao momento. A blague do porco a andar de bicicleta já não tem a estranheza necessária que a situação americana requer. Mas que eleições Presidenciais vamos ter!)

A pretensa conspurcação dos ditos valores americanos pelo chamado pensamento liberal (atenção à conotação de esquerda e progressista que o termos tem nos EUA) tem representado o grande mote de florescimento do pensamento conservador mais radical e da captura do Partido Republicano por estes movimentos. Em meu entender, Trump não é senão alguém que compreendeu que, para o seu próprio interesse económico e material, a instrumentalização desta sociedade americana desesperada pelo regresso aos valores da tradição mais conservadora constituiria uma medida a preceito da sua ambição. Assim, o movimento, mais visível em alguns Estados, de verdadeira caça às bruxas e cancelamento de tudo que cheire a “wookismo”(com expressão na sociedade americana de hoje), proteção de minorias, educação progressista, negação do evolucionismo em favor do mais acrítico criacionismo, novas formas de organização da família, feminismo e crítica do lobby das armas tem vindo a ganhar expressão e a rejeitar qualquer forma de modernice liberal. A influência deste movimento no próprio pensamento Democrata está por estudar aprofundadamente.

O que o artigo do Economist começa por rejeitar é o movimento também em curso de purificar o Mercado em função desses valores da tradição conservadora radical, organizando uma economia paralela em que produtores, distribuidores e consumidores partilhem o mesmo referencial de valores passadistas. Recentemente, foi noticiada na imprensa portuguesa a guerra aberta existente entre a Walt Disney e o governo da Flórida (de Ron de Santis, claro), através da qual a primeira condenou a decisão legislativa designada de “Don’t say gay”, mas são igualmente conhecidas as acusações realizadas por estes movimentos de grandes empresas como a Coca-Cola, a Microsoft e a Delta, por exemplo, após estas terem denunciado algumas novas leis eleitorais aprovadas em alguns Estados Republicanos.

A tentação para estes desesperados políticos criarem uma espécie de economia paralela como se o mercado fosse uma seita, de admissão reservada a uma investigação de senha, raízes e valores para dela fazer parte, é das coisas mais aberrantes e perturbadoras geradas pela polarização extrema da sociedade americana.

O artigo do Economist é rigoroso ao identificar os constrangimentos naturais à formação de uma economia paralela viável, alguns dos quais decorrem dos próprios princípios do mercado, um dos mais importantes sendo o dos ganhos de escala que as grandes empresas a banir pelos conservadores já adquiriram pela sua dimensão. Daí que conclua que nenhum dos grupos tenha atingido a autosuficiência de mercado, pressupondo-se, assim, que não tenham conseguido a dimensão mínima necessária para se imporem. Mas também se poderá dizer que os maiores não tenham sido suficientemente incisivos na denúncia destes atropelos e da própria polarização. Além disso, sabemos que alguns dos comportamentos destes grandes estão na origem de uma algumas das manifestações da polarização.

A polarização Democratas-Republicanos já não obedece aos princípios de outros tempos. Os Republicanos foram claramente capturados e, como disse, está por definir o impacto disso no próprio pensamento Democrata. Mas não deixa de ser irónico que sejam princípios básicos de funcionamento dos mercados e do seu crescimento a ditar os constrangimentos mais sérios a que o conservadorismo mais radical possa constituir a sua própria economia.

 

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