(Com uma noite de S. João das mais climaticamente irrepreensíveis de que tenho memória e com uma Cidade cada vez mais cosmopolita de que tenho memória, houve tempo suficiente para refletir sobre a nossa fragrante ignorância informativa que a Rússia de todos os poderes e excessos nos traz. É espantoso como a troupe alargada de palradores instalada na nossa comunicação social disserta erraticamente sobre a revolta e depois recuo do grupo de mercenários Wagner, simulando que entende o que está a acontecer, quando uma análise medianamente fria e objetiva nos mostra que percebem tanto do assunto como nós próprios. A diferença é que são pagos para disfarçar a sua própria ignorância. E aqui estou eu, num domingo um pouco mais ameno e já virado para S. Pedro, a pensar na minha própria perplexidade e ignorância sobre o que se passa em territórios tão longínquos.)
Sabíamos que uma parte sensível da diplomacia externa russa, particularmente em África, tinha no Grupo Wagner um importante aliado de circunstância ou de convergência de interesses. Sabíamos também que a invasão da Ucrânia pela Rússia localizava tal grupo em diferentes cenários de guerra, embora não se compreendendo bem o que é que fazia correr aquele grupo de mercenários e com que base de acordos com o regime de Putin essa participação era assegurada. Em África, percebia-se que o apoio do grupo Wagner a alguns governos tinha como contrapartida a participação no saque das riquezas naturais de tais países, numa espécie de guerra por objetivos. Já na presença na Ucrânia era mais difícil compreender o racional. Mas cedo se percebeu que entre Prigozhin e algumas figuras do poder militar russo havia uma tensão indisfarçável no ar, sendo no entanto incompreensível o papel de Putin nessa triangulação.
E a partir daqui entra-se nas trevas informativas. Mas afinal a rebelião com movimentação inicial de forças na fronteira entre a Ucrânia e a Rússia, caminhada para Rostov e posterior encaminhamento para Moscovo não tem explicação plausível, pelo menos à luz da reduzida informação que circulou na imprensa internacional. O silêncio ocidental sobre a matéria tanto pôde significar uma atitude de prudência e precaução face a uma evolução interna russa cujos contornos finais poderiam ser mais catastróficos do que a situação atual, como poderá sugerir, talvez de modo cabalístico acentuado, a presença de acordos inconfessáveis com conhecimento dos serviços secretos ocidentais.
A minha perplexidade começa neste ponto. Não consigo encontrar em tudo que foi publicado sobre a matéria uma explicação plausível para a rebelião. E, de certo modo, essa perplexidade alonga-se para o recuo observado nos movimentos do Grupo, sobretudo no âmbito de uma negociação que teve no líder da Bielorússia o principal protagonista, o que adensa todas as dúvidas. Como é que um líder de segunda, simples títere de Putin, aparece com tanta centralidade neste processo? O mistério adensa-se.
Mas a perplexidade não se queda por aqui. Como é possível que uma força visível no terreno e embora bem treinada e destemida como o Grupo Wagner avance com tanta facilidade pelo interior do território russo, apontando a Moscovo, como que operando num espaço vazio sem constrangimentos? Mesmo a ocupação de Rostov deu a impressão por vezes de uma larga encenação. Mas é esta a capacidade de defesa interna do regime russo? Uma larga anestesia parecer ter travado todas as possibilidades de defesa e reação, sendo necessário que tropas chechenas de Kadyrov se movimentassem para aparentemente ocupar o espaço da reação que as forças regulares russas não estavam a assegurar. Será que o regime com as suas contradições internas está por um fio e que a presença de ocupação na Ucrânia desbaratou energias internas? O que pensar de todo este imbróglio?
Só sei que estou cada vez confuso. Espanta-me a lata dos palradores de serviço dissimulando a sua própria ignorância. Ou seja, uma história global cada vez pior contada.
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