(Foi o saudoso Engº Rui Oliveira que me iniciou bem lá atrás no tempo na leitura de alguns escritos do intelectual polaco, Adam Michnik, então ativista do Solidariedade e racionalizador como ninguém da luta pela liberdade na Polónia, explorando a triangulação entre o movimento sindical, o papel incontornável da Igreja, ao contrário de Walesa, Michnik não era um militante católico e a presença repressiva dos soviéticos. Michnik emergia, então, como um profundo teorizador da transformação possível em ambientes históricos e políticos vigiados por forças repressivas bloqueadoras da liberdade e, por isso, sempre o segui com atenção. Afinal, ele era um teorizador de um movimento concreto, arriscando diariamente a vida e isso faz toda a diferença num intelectual. Hoje, Adam Michnik é o editor-chefe da Gazeta Wyborcza e tem obviamente muito que dizer sobre o McCarthismo que o Partido da Lei e da Justiça de Jaroslav Kaczynski está a desenvolver em torno do pretenso combate à influência russa na Polónia. O pretexto da russofobia num contexto em que o papel fundamental da Polónia na transmissão da ajuda da União Europeia lhe está a permitir aguentar junto da União a deriva antidemocrática que o PiS está a promover não é mais, segundo Michnik, do que uma manobra useira e costumeira em países de autoritarismo político para retirar do caminho possíveis adversários do Partido da Lei e da Justiça nas próximas eleições do outono. Aliás em linha com a perseguição de Estaline aos troksistas, com o que se passa na Bielorússia e também no Kremlin.)
A entrevista que Michnik concedeu à professora Irene Grudzinska Gross do Instituto dos Institutos Eslavos da Academia de Ciências Polaca é um documento magnífico de inteligência, de sabedoria, de rigor histórico e de profundo conhecimento dos ínvios caminhos que o PiS traçou para a sociedade polaca. O Project Syndicate publica em boa hora essa magnífica entrevista e aprendi mais nos poucos minutos que a sua leitura convoca do que em toda a acumulação de lixo que a vulgata informativa nos traz regularmente.
A entrevista começa por ser fundamental para descrever com crueza o que, a coberto de uma legislação que pretende investigar a chamada “influência russa”, cavalgando uma onda que Putin abriu com a sua loucura histórica, Michnik entende ser uma forma repetida do McCarthismo nos EUA, reincidência das purgas estalinistas e dos próprios métodos do Kremlin. Com a entrevista compreendi melhor a gigantesca manifestação de rejeição do PiS de 4 de junho. A posição de Michnik é um prodígio de contenção, vinda de uma personalidade que historicamente nunca morreu de amores pelo autoritarismo russo, embora se recuse a identificar a Rússia de Putin com o cancelamento da cultura russa e com que subsistirá depois de Putin desaparecer (uma indeterminação) do comando dos destinos do povo russo. A sua denúncia da russofobia num contexto em que melhor do que ninguém Michnik conheceu a repressão soviética é um verdadeiro monumento de equilíbrio histórico. Ou seja, se o José Milhazes lesse Michnik talvez fosse boa ideia.
Mas a entrevista habilmente conduzida por Grudzinska Gross reserva-nos ainda um valioso material sobre a influência em declínio da igreja polaca. Percebe-se que Michnik, tal como todo o Solidariedade, mantém João Paulo II numa espécie de redoma de agradecimento para todo o sempre pelo seu papel na luta pela liberdade, mas o seu diagnóstico sobre o declínio da igreja polaca é contundente. A igreja polaca está hoje taticamente acomodada no apoio à Ucrânia, que lhe garante uma fácil reserva de popularidade, mas o seguimento acéfalo das posições do PiS e a sua posição favorável à lei anti-aborto custar-lhe-ão muito provavelmente sérios revezes no futuro próximo. A estrutura clerical, sobretudo dos bispos, que anda pelos oitenta anos e muitos concede por agora à Igreja polaca uma rigidez inultrapassável e torna-a incapaz de qualquer golpe de asa para conter os desvarios antidemocráticos do Partido da Lei e da Justiça.
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