sábado, 1 de julho de 2023

EM ROTA PARA O FIM DO CAPITALISMO DEMOCRÁTICO?

 



(Em post anterior, tive a oportunidade de sublinhar a relevância da obra que um dos mais importantes cronistas do Financial Times, Martin Wolf, publicou recentemente, The Crisis of Democratic Capitalism. Tal como o referi então, durante largo tempo demos de barato que a reprodução do capitalismo evoluiria bem alinhada com a preservação da democracia, numa espécie de casamento genuíno entre democracia económica e democracia política. Esse casamento representava então uma réstia de esperança, numa era em que as ilusões utópicas à esquerda se tinham dissipado e ruído com estrondo. Assim sendo, de mal o menos, teríamos de conviver com o capitalismo e mitigar as suas profundas imperfeições, já que teríamos, pelo menos, assegurada a democracia política. Martin Wolf mostra com eloquência que esse tempo de ilusão está quebrado e, por isso, o tema tem sido um alfobre imenso de debate e produção teórica. A Foreign Affairs de Julho/Agosto de 2023 abre o seu relevante palco ao economista Daren Acemoglu para uma recensão crítica não só da obra de Wolf, mas também da obra de Pranab Bardhan, A World of Insecurity. Acemoglu foi introduzido em Portugal pelo inefável ex-Ministro da Economia Manuel Pinho, num tempo em que não eram ainda visíveis os seus desmandos e conluios com Ricardo Salgado e ainda antes de ter feito corninhos aos deputados no Parlamento. O economista do MIT não tem culpa dos desmandos do seu hóspede e a sua obra é bem mais importante do que o fado dos desmandos de Manuel Pinho.)

A recensão é excelente e recomenda-se. A tese de Acemoglu é muito simples e incisiva. São essencialmente as forças da desigualdade nas diferentes manifestações que ela reveste e a proliferação das condições de insegurança que estão na origem da crise ocidental. Através dessa crise, o capitalismo deixa de poder assegurar como marca de água a preservação da democracia e dá origem a insuspeitadas coexistência e coabitações mais ou menos estranhas, designadas em tom suave por democracias iliberais, mas que podem ser caracterizadas com tintas mais escuras e ameaçadoras. O autoritarismo está a fortalecer-se em muitas latitudes e o fenómeno é bem mais variado do que o capitalismo repressivo de Estado à moda da China.

Acemoglu refere o alerta de Bardhan segundo o qual deveríamos possivelmente ter estado mais atentos às palavras de Thomas Mann em 1938, através das quais ele referia o perigo de se tomar a democracia como adquirida e garantida, sobretudo à medida que as memórias coletivas das diferentes nações e povos começavam a esquecer aa difíceis condições de construção da democracia. Particularmente o apelo à segurança revela uma elevadíssima probabilidade de conduzir os indivíduos a aceitar desvios antidemocráticos para proporcionar aos cidadãos uma sensação de segurança mais robusta. E aí teremos a insegurança a servir de pano de fundo para o autoritarismo.

A associação entre desigualdade e insegurança é relevante e tem sido pouco desenvolvida. A razão para tal é intuitiva. Desigualdade e insegurança são realidades por si só demasiado pesadas e influentes, pelo que será mais natural o desenvolvimento do seu estudo evoluir separadamente do que propriamente apostando na interdependência entre os dois fenómenos. E de facto, se pensarmos melhor, a interdependência entre desigualdade e insegurança é manifesta, gerando efeitos cumulativos inesperados, ampliando angústias e, mais do que isso, abrindo caminho a toda a série de desvios democráticos.

Estou a escrever este comentário à recensão crítica de Acemoglu e penso obviamente na profunda confusão em que a sociedade francesa se encontra. Esta última assemelha-se cada vez mais às zonas rurais e florestais em Portugal em barril de combustão potencial. Situações étnicas e raciais combinadas com profundas desigualdades foram o combustível propício para que uma polícia claramente não treinada para dissipar concentrações potencialmente violentas e, pelo contrário, vocacionada para a repressão mais ou menos violenta, acendesse o rastilho da morte de um jovem e toda a sequência de reações em cadeia.

E o que é mais espantoso é tudo isto acontece num país em que o Estado social não é coisa morta e quando comparado com a sua ausência em países como os EUA parece não funcionar como fator de desaceleração de conflitos. Além disso, o choque de culturas, e a sociedade francesa é um verdadeiro laboratório para o desenvolvimento dessa difícil coexistência, abre frentes irreparáveis de insegurança cultural, por si também propícias à livre aceitação de fórmulas anti-democráticas ou desvirtuadoras dos princípios democráticos fundamentais. E, matéria pouco discutida, com exceção do filósofo Michael Sandel (Harvard), a meritocracia parece ter falhado redondamente como fator de ascensão social (o chamado elevador social) e ter antes ajudado a reforçar grupos de descontentes cada vez mais violentos.

E fiquemos com a síntese final da recensão de Acemoglu: “O capitalismo democrático está sem dúvida em crise. Qualquer solução deve começar com um foco na restauração da confiança pública na democracia. As pessoas em democracia não estão de facto indefesas: existem vias para gerar um tipo mais justo de crescimento económico, controlo da corrupção e reduzir o poder excessivo das grandes empresas, como o economista Simon Johnson e eu próprio defendemos. Isso não ajudará apenas a reduzir a desigualdade e criar as bases para uma prosperidade partilhada; demonstrará também que as instituições democráticas funcionam – assegurando que esta crise do capitalismo democrático não antecipará o fim da democracia”.

 

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