segunda-feira, 1 de maio de 2023

MARTIN WOLF AGAIN

 


(Há 49 anos, no 1 de maio de 1974, de serviço na Escola Prática de Administração Militar do Lumiar em Lisboa, pressentia-se um clamor na Cidade, no que iria ser uma das maiores manifestações populares, com a Revolução ainda muito fresca e cheia de ilusões. As grandes divisões do radicalismo ainda não se manifestavam com clareza, tudo era mais fácil, porque a ilusão do poder assim o determinava. Quis o acaso que hoje, no 1 de maio de 2023, o tema desta crónica fosse uma obra de um grande jornalista e economista, Martin Wolf, economista-chefe do Financial Times, que nos mostra como os tempos da ilusão mudaram. Não só as alternativas mais revolucionárias se revelaram utópicas e incapazes de gerir as suas próprias contradições, como o próprio casamento, de conveniência ou por amor, não interessa, entre o capitalismo e a democracia liberal está hoje de rastos. A utopia deveria estar de novo por aí a desafiar as nossas ilusões, mas não. Todas as esperanças parecem ter azedado e uma espécie de pessimismo estrutural espreita em todas as esquinas, habilmente capitalizado por quem pretende a ruína dos processos democráticos.

“The Shifts and the Shocks – what we have learned – and have still to learn – from the financial crisis”, publicada pela Penguin Books em 2014, é seguramente a melhor obra de um não académico sobre a crise de 2017-2018 e ocupa um lugar de realce entre as minhas referências fundamentais para compreender esse grande abalo sofrido pelo capitalismo. Alguns economistas designaram os efeitos desse grande abalo por Grande Recessão, para a distinguir da Grande Depressão de 1930, e essa obra de Martin Wolf foi para mim crucual para compreender os meandros mais ocultos dessa crise. Quem acompanha as suas críticas no Financial Times, cedo percebeu que estaria a germinar uma outra grande reflexão sobre as derivas do capitalismo. Essa evolução de pensamento tem sobretudo significado a parti de alguém, conhecido por ter sido um dos grandes entusiastas da globalização. Why Globalisation Works ainda constitui hoje uma das melhores obras para se compreender o alcance mítico da globalização.

Sempre imaginei que seria uma questão de tempo para Martin Wolf surgir com a sua reflexão sobre o tal pessimismo estrutural a que anteriormente me referi. E aí, acabadinha de chegar às minhas mãos e já com alguma leitura avançada, The Crisis of Democratic Capitalism, Penguin Press, 2023 (1).

A reflexão de Wolf vai bem mais longe do que em The Shifts and the Shocks, pois não se limita a trabalhar as vias segundo as quais a crise do capitalismo se tem instalado. É mais profunda, pois não só a desenvolve, como fundamentalmente a interliga com a crise da própria democracia liberal, mostrando como inapelavelmente as duas frentes de rotura andam ligadas e suscitam inúmeras ameaças ao que pensávamos estar para sempre preservado, a democracia. A obra representa assim simbolicamente uma demonstração inequívoca de como as ilusões que se viviam no 1 de maio de 1974 foram atropeladas por uma mudança de mais vasto e complexo alcance, questionando tudo, sobretudo a pretensa supremacia do casamento entre o capitalismo e a democracia liberal, que poderíamos designar de “capitalismo democrático”.

Só um homem com a história de vida e a experiência de Martin Wolf, que levou o jornalismo económico ao seu mais alto nível, colocando-me em agonia perante a baixa qualidade e impreparação do nosso jornalismo económico, profundamente venal e sempre prontos a seguir as agendas dos seus amos e senhores.

Gostaria de assinalar este post com uma citação da obra de Martin Wolf e escolhi uma que termina com uma referência a um grande economista, Karl Polanyi que muito pouca atenção tem despertado em Portugal (uma grande exceção podemos encontrar no meu Amigo Jorge Bateira, cuja tese de doutoramento em Manchester versou estes temas, Abraço Jorge) e que iria jurar não haverá um jornalista económico em Portugal que o conheça:

“(…) O mote deste livro é “nunca é demasiado”, como os antigos Gregos costumavam dizer. A saúde das nossas sociedades depende da sustentação de um equilíbrio delicado entre o económico e o político, o individual e o coletivo, o nacional e o global. Mas esse equilíbrio está quebrado. A nossa economia desestabilizou a nossa política e vice-versa. Já não somos capazes de combinar as operações da economia de mercado com a democracia liberal estável. Uma grande parte da razão que isso explica é que a economia não está a proporcionar a segurança e a generalizadamente disseminada prosperidade esperada por largas franjas das nossas sociedades. Um sintoma desse desapontamento é a generalizada perda de confiança nas elites. Uma outra consiste no populismo e autoritarismo crescentes. Uma outra ainda é o crescimento de políticas identitárias à esquerda e à direita. E uma outra é a perda de confiança na noção de verdade. Quando isto acontece, a possibilidade de um debate informado e racional entre os cidadãos, o verdadeiro fundamento da democracia, evaporou-se. Na Grande Transformação, publicada em 1944, o mesmo ano em que Fridrich Hayek publicou The Road to Serfdom, Karl Polanyi argumentou que os seres humanos não iriam tolerar viver sob um verdadeiramente livre sistema de mercado. A experiência das quatro décadas anteriores tem vindo a reivindicar este ponto de vista”.

(1) https://www.penguinrandomhouse.com/books/554951/the-crisis-of-democratic-capitalism-by-martin-wolf/

 

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