sexta-feira, 5 de maio de 2023

CORAJOSO OU SIMPLESMENTE ACOSSADO?

 


(A decisão de António Costa de segurar o ministro Galamba contra a opinião do Presidente da República e contra tudo e todos, invocando para isso razões de consciência e a sua própria avaliação interpretativa dos factos ocorridos no Ministério das Infraestruturas, e a mais do que esperada declaração-reprimenda de Marcelo introduziram na vida política portuguesa um fator gigantesco de aceleração. Devo confessar que tive dificuldade de me concentrar para registar neste espaço a minha própria avaliação de toda esta sequência de factos e não-factos. Mesmo com algum tempo passado sobre os acontecimentos, não estou ainda certo se o conseguirei fazer de forma plena e com a ponderação de todos os elementos de convocação necessária. Uma coisa é certa, a decisão de António Costa apanhou o mundo do comentário político desprevenido quanto a esse possível cenário de não aceitação da demissão de Galamba e uma onda desconcertante pareceu tomar conta do universo político interno. E, perante o meu espanto e perplexidade, muito boa gente que zurziu forte nos últimos dias em António Costa, à medida que a situação governamental se descontrolava, ficou aparentemente zonza com a decisão de ir contra a maré, ainda que antecipando a reprimenda de Marcelo. O Primeiro-Ministro parece conhecer melhor o mundo político português do que poderíamos antecipar. Mas, à medida que a poeira se deposita sobre os sedimentos da governação, não consigo associar à decisão de António Costa algo de muito promissor quanto ao futuro da governação, que é isso que fundamentalmente me interessa.

Numa avaliação fria e rápida da situação, António Costa pode ter com a sua decisão recuperado a sua capacidade de afirmação junto do comentário político, mais do que na frente interna do Partido Socialista, na qual começam a parecer fissuras, sobretudo de gente, que calada até agora na sua irrelevância, caso por exemplo de Vitalino Canas, surge agora a ousar discordar do Chefe. Não é o discordar que está em causa, mas antes a escolha criteriosa dos tempos em que essa discordância é afirmada. Mas as minhas dúvidas prendem-se com a desproporção entre o “dar o corpo às balas” de Costa e a valia de quem é protegido por essa decisão. João Galamba é seguramente um “enfant terrible” da política em Portugal à esquerda, mas devo confessar que não morro de amores por “enfants terribles” na governação. Tenho para mim que o rejuvenescimento da classe política em Portugal me assusta bastante e dediquei-lhe inclusivamente um post, designado provocatoriamente de “A bolha”(1), pois me parece que esse mundo rejuvenescido aprendeu e vive num mundo à parte, demasiado desprendido da sociedade e dos seus problemas. Costa conquistou seguramente em Galamba um apoio decidido, mas isso é concretizado à custa de uma debilitação desgastante das condições em que o governo irá intervir nos próximos tempos. Ou seja, se projetarmos para o futuro o que tem sido a maioria absoluta, parece praticamente impossível admitir que a legislatura possa ser terminada sem dissolução, suscitando a complexa questão de saber quando é que António Costa terá condições para uma remodelação governamental, determinada pela ocorrência de casos similares, mas antes pela necessidade de explicitar uma mudança de rumo, com novos objetivos. Tudo leva a crer que as próximas eleições europeias irão ser tudo menos a oportunidade de se recentrar a discussão da questão europeia. Elas vão ser a grande oportunidade para a oposição e para a Presidência da República avaliarem o estado da maioria absoluta e isso não anuncia boa coisa para o debate democrático europeu. 


Quanto à declaração-reprimenda de Marcelo, ela é o produto inevitável de alguém que fala declaradamente demais, conforme José Pacheco Pereira está permanentemente a repetir. Tantas vezes Marcelo falou de dissolução, sobretudo para dar cavaco aos que a solicitavam à falta de melhores ideias, que se viu agora forçado a reafirmar a sua ideia de estabilidade política, mas sendo obrigado a desempenhar junto do Governo o que a desorientada oposição não tem conseguido fazer, imobilizada pelo ruído do Chega.

Tenho a ideia de que Costa gosta destas conjunturas de pressão para se focar na governação e em objetivos claros. Mas, obviamente, não será por toque de magia que o governo se transformará num modelo de execução. As suas fragilidades e potencialidades, talvez mais fortes as primeiras do que as segundas, estão lá intactas e não me parece que toda a gente se motive e transforme como Costa o tende a fazer em situações desta natureza. Por isso, Galamba talvez não seja o Menino de Ouro que justificasse a aceleração política em que vamos seguramente entrar. Obviamente que há sempre surpresas e o ministro Galamba até pode ultrapassar-se a si próprio e nivelar a sua atuação pelo menos com o que conseguiu concretizar na Secretaria de Estado da Energia. Mas as coisas terão descido a um nível tal que o risco é gigantesco. E da Comissão de Inquérito tudo poderá ser esperado. Imagino que os bilhetes para o espetáculo estarão já na candonga com preços estratosféricos. Cheira a sangue e escasseiam os cordeirinhos para sacrificar.

(1) https://interesseseaccao.blogspot.com/2023/05/a-bolha.html

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