(Depois de alguns anos em que o fenómeno parecia ter desaparecido e se tivesse questionado se a meta de 2% para a variação dos preços utilizada pelos Bancos Centrais era demasiado ambiciosa, a inflação regressou e passou a desafiar de novo a sagacidade e a sabedoria dos economistas. Mas, além disso, ela passou de novo a pairar sobre a avaliação do bem-estar real dos assalariados e dos agentes económicos em geral. É conhecida a afirmação hoje muito divulgada de que o crescimento económico não está a traduzir-se imediatamente na melhoria das condições de vida das pessoas, sendo a inflação o mau da fita a quem se aponta o dedo. Por muito que os economistas se queiram distanciar da evidência e trabalhar sobre condições mais abstratas e menos sujeitas a choques imprevisíveis, a evidência conta. Por isso, não admira que, nos tempos mais recentes, tenham regressado em força as abordagens explicativas da inflação no novo contexto macroeconómico de recuperação de uma pandemia e de uma guerra em cima. Como sempre, quando os macroeconomistas debatem todos percebemos que a coisa começa sempre primeiro pelos EUA, onde a economia é mais reativa e tem uma cultura de debate mais intensa e regular. De certo modo, os macroeconomistas europeus ganham com isso, pois a investigação avança do lado de lá do Atlântico, sendo possível tirar disso partido, recontextualizando resultados em função das diferentes características da economia europeia.
No caso vertente, existem mil e uma razões para que o debate sobre as origens da inflação tenha começado nos EUA. Como é conhecido e este blogue o referiu, o modo como a economia americana reagiu ao choque pandémico foi muito diferente quando comparado com o genericamente observado na Europa. O choque pandémico atingiu mais fortemente o emprego americano, já que o sistema de proteção, ao contrário do europeu, não protegeu o emprego mas sim os trabalhadores, injetando nos seus bolsos uma substancial quantidade de dinheiro para mitigar simultaneamente o desemprego e os efeitos do confinamento. Assim, é conhecido que o chamado pacote de estímulo fiscal de Biden assumiu proporções elevadíssimas, estimado em cerca de 4 vezes e meia superior ao que foi praticado na Grande Recessão de 2008. Além disso, a sociedade americana não apresenta os mesmos níveis de envelhecimento, pelo que a diferença pode pesar no que respeita ao estado de tensão do mercado de trabalho. Na Europa, o estímulo fiscal foi bastante menor quando comparado com o dos EUA, com a proteção do emprego nos lay-offs a permitir defendê-lo melhor e impactando menos o desemprego.
Na semana passada, uma das mais reputadas instituições económicas ou think-tanks americanos, a Brookings Institution, organizou um seminário-chave sobre a explicação da inflação, bem ao nível da qualidade de debate a que estamos habituados. Recordo que, tal como reiteradas vezes o comentámos neste blogue, o debate entre os macroeconomistas americanos foi intenso, foi evoluindo em função do próprio comportamento da inflação e da economia americana, foi especialmente seguido pelo banco central americano e, por isso, urgia algo de mais amplo em matéria de sistematização de resultados de investigação recente.
O seminário decorreu essencialmente em torno da apresentação e discussão de dois grandes trabalhos de investigação, dos quais, pelo facto de ter sido mais amplamente citado na imprensa americana, irei dar mais atenção ao que foi realizado por dois grandes macroeconomistas, Ben Bernanke, que já foi Governador do FED USA e Olivier Blanchard que já foi economista-chefe do FMI. Obviamente que não vou aqui neste espaço dedicar atenção aos aspetos analíticos do modelo relativamente simples construído pelos dois economistas, mas antes às suas grandes conclusões, devidamente contextualizadas pelo que já referi de particularidades da economia americana na política anti-Covid. E o modelo tem ideias interessantes que valeria a pena noutro espaço discutir com atenção, de que destaco especialmente a variável utilizada por Bernanke e Blanchard para medir o grau de tensão no mercado de trabalho, optando por outra variável que não a taxa de desemprego. A variável utilizada é o rácio entre duas taxas: a taxa de vagas oferecidas pelos empregadores (vagas abertas a dividir pela força de trabalho) e a taxa de desemprego. Mas isso são outras conversas mais académicas.
Uma das grandes conclusões do modelo de Bernanke e Blanchard é o reconhecimento de que o enorme pacote fiscal anti-pandémico lançado na economia americana pela administração Biden criou efetivamente um excesso de procura global. No entanto, ao contrário do que é normalmente referido na literatura macroeconómica, os efeitos inflacionários desse excesso de procura global não foram inicialmente determinados significativamente por fenómenos de aquecimento no mercado de trabalho. Inicialmente, as vagas de emprego oferecidas em relação ao desemprego desceram, mas com uma constância assinalável da taxa de desemprego. Os autores encontram na transição operada com a saída do confinamento na economia americana as principais razões para o surto inflacionário inicial. Com a libertação do confinamento, as despesas de consumo deslocaram-se rapidamente dos serviços para os bens de consumo duradouros e outros bens, pressionando inelutavelmente as cadeias de produção (essencialmente asiáticas) e os custos de transporte (ver gráfico construído por Paul Krugman imediatamente abaixo). Fenómenos de escassez relativa de oferta em certos setores atingiram expressão evidente, com a evolução do preço dos carros novos e usados a assumir particular expressão, questão que a sobreposição com a invasão russa da Ucrânia em fevereiro de 2022 agravou, acrescentando ao processo a crise energética.
Bernanke e Blanchard defendem, assim que, na sua fase inicial, a subida dos preços não teve que ver com as tensões no mercado de trabalho nem com mecanismos de relação cumulativa entre salários e preços, mas antes com os problemas de distorção de mercados atrás referidos que, dados os salários, tenderam, a agravar preços. A análise dos dois economistas torna-se ainda mais interessante a partir do momento em que o modelo construído sugere que essas tensões no mercado de trabalho começam mais tarde a fazer sentir a sua influência, à medida que as cadeias de produção regressem à sua posição inicial (aspeto indeterminado pela persistência da guerra). Se as cadeias de produção ultrapassarem os fenómenos de escassez atrás referidos, as tensões no mercado de trabalho serão entendidas agora como fatores mais persistentes de inflação, continuando a exigir atenção por parte do banco central.
Quanto à indeterminação de saber se para controlar definitivamente o surto inflacionário o desemprego terá de aumentar mais acentuadamente, os autores não a resolvem. A sua conclusão final está porém acompanhada de algum otimismo: “(…) Os nossos resultados mostram que a inflação pode ser um resultado complicado. Os executores da política económica devem estar alertas para a possibilidade das pressões inflacionárias resultarem de pressões não só no mercado dos produtos como do mercado de trabalho, através de mudanças inesperadas nos custos dos fatores de produção ou de alterações de procura que colidam com curvas de oferta setorial inelásticas. Além disso, através de vários mecanismos, as pressões provenientes dos mercados de produtos e do mercado de trabalho podem interagir entre si e reforçarem-se mutuamente. As boas notícias são que, empiricamente, demonstrámos que os efeitos de encadeamento provocados pelos choques de produção são relativamente modestos, implicando que, tal como os críticos iniciais do fenómeno referiram, o equilíbrio nos mercados de trabalho constitua, em última instância, a principal preocupação dos bancos centrais para manter a estabilidade dos preços”.
Fica a pergunta e obviamente a dúvida: sim, isto refere-se aos EUA e Bernanke e Blanchard são gente competente e sabem o que fazem. E se (re) contextualizarmos os resultados para a Europa? Chegaríamos a conclusões similares? Sabemos pelo menos que o choque fiscal não foi de tão grande magnitude. Rigidez de oferta, sim também foi observada. O problema é que o mercado de trabalho na União Europeia não está tão bem estudado e temos a tensão de oferta provocada pelo declínio demográfico. Por isso, temos de aguardar a publicação de investigação europeia específica.
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