(Temos de convir que a economia portuguesa e a forte dependência que a sociedade apresenta face ao Estado seriam condições preferenciais para que o pensamento (neo) liberal tivesse outra expressão na cena política portuguesa. Nos últimos tempos, o governo de Passos Coelho e Paulo Portas foi a expressão máxima dessa tentativa. Tal como oportunamente o reiterei várias vezes, o processo de ajustamento foi claramente utilizado por representantes dessa tentativa para recriar na sociedade e na economia portuguesas condições favoráveis a essa pretensão, erradicando o que consideravam ser constrangimentos com continuidade incompatível com esse propósito. A tentativa falhou talvez pela sede excessiva de ir ao pote e, por agora, salvo uma desorientada Iniciativa Liberal, o processo está limitado a um certo jornalismo político mais acutilante do que a própria oposição parlamentar. Em meu entender, esse falhanço tem razões estruturais pouco discutidas cá pelo burgo. Não só o movimento herda o tradicional desvio temporal com que as coisas chegam cá, vinte anos ou mais, como se verifica uma enorme orfandade relativamente a experiências internacionais que sirvam de motivação e exemplo para mostrar ao eleitorado que o pensamento neoliberal é possível em Portugal.
Analisando a cena internacional, não é difícil concluir que esse pensamento neoliberal de expressão portuguesa pode considerar-se fora do tempo, dada a inexistência de referentes internacionalmente disponíveis ou, como diria um tecnocrata do marketing, ausência de benchmarking pertinente.
O Reino Unido de Cameron e Osborne foi uma dessas referências. Mas desde os tempos da cedência ao BREXIT e da experimentação macroeconómica conservadora que ambos protagonizaram, a experiência do Reino Unido deixou de poder ser indicada como algo a seguir, pois esse neoliberalismo pôs o Reino Unido de pantanas, conduzindo os seus cidadãos a uma perda sistemática de bem-estar material. O Reino Unido é, assim, um mau exemplo e percebe-se que mesmo o altar do Observador tivesse deixado de invocar esse referente. Era mau demais e demonstrava-se assim que a experimentação neoliberal nem sequer num país de enormes recursos tinha algo de positivo para apresentar.
Obviamente que o outro referente seria o dos EUA. Independentemente da conflitualidade que a bipolaridade Democratas-Republicanos introduz nesse referente, a verdade é que os EUA de Biden enveredaram por um modelo de política económica que representa um rude golpe na disseminação do pensamento neoliberal. Trump iniciou inconsequentemente no quadro de uma fanfarronice protecionista que falhou em toda a linha, mas o pós-Trump de Biden deu outro seguimento a essa orientação. O que significa que, também por estas paragens, os neoliberais portugueses têm razões bem justificadas para se sentir incompreendidos, desamparados e isolados.
Vale a pena dedicar algumas notas de reflexão a esta morte do neoliberalismo às mãos da governação Biden.
Noah Smith mostra com uma inequívoca clareza (1) como a política económica americana de momento representa um epitáfio sério ao neoliberalismo económico, pelo menos enquanto durar este contexto internacional que vivemos. No texto da placa-epitáfio que assinala essa mudança de rumo, está inscrita uma palavra proibida nos tempos áureos do neoliberalismo económico – política industrial. Sim, a política industrial está de volta, por muito que custe aos diretórios europeus que procuraram em tempos passá-la para baixo do tapete e tudo fizeram para a transformar apenas em política de I&D e inovação. Daí a enorme atrapalhação desses diretórios europeus, também eles fora do tempo e incapazes de responder à mudança de rumo dos EUA.
Dois importantes e poderosos instrumentos estão em curso na administração de Biden, um relativo à produção de semicondutores (CHIPS Act) e outro relativo à produção de energia verde (Inflation Reduction Act – IRA).
O consenso sobre o comércio livre já lá vai, o laissez-faire é uma relíquia do passado e, escudando-se politicamente, na necessidade de responder ao poderio económico e tecnológico da China, relativamente ao qual os EUA estiveram longo tempo adormecidos, a administração Biden formula uma política industrial que, além de responder ao poderio da China, pretende também combater a desigualdade interna, fortemente polarizadora da sociedade americana, e simultaneamente favorecer a recuperação da classe média americana.
A inspiração é, segundo Smith, a experiência da industrialização militar e logística que acompanhou a entrada dos EUA na Segunda Guerra Mundial, que misturou ciência e política tecnológica, reforçou da capacidade do trabalho, aceleração do crescimento e criação de condições para o robustecimento da classe média. A mensagem com que esta política é transmitida aos Americanos é simples: energia mais barata, um carro elétrico, um emprego melhor, segurança face à mudança climática e face ao poderio chinês e às empresas anunciando também energia mais barata, chips mais baratos e ajuda pública nessas matérias. Não faço ideia se esta mensagem e os resultados a ela associados (para já visíveis apenas no setor da eletrónica) serão suficientes para derrotar Trump. Mas o que a mensagem representa é o regresso em força da política industrial, como resposta à quebra do consenso no comércio livre, mesmo que a barganha Democratas-Republicanos vá ser dura para a concretizar.
Ou seja, também por esta via, os neoliberais portugueses terão razões para se sentir desafortunados no tempo em que decidiram mostrar as suas garras.
(1) https://www.noahpinion.blog/p/the-new-industrial-policy-explained?utm_source=substack&utm_medium=email
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