terça-feira, 2 de maio de 2023

PSICOLOGIA DE DEPOSITANTES OU O PÂNICO LENTO

                                                    (Lá foi mais um, o First Republic Bank)

(Não é tema novo neste blogue a atenção prestada à instabilidade do sistema bancário e financeiro. Decididamente, não tenho qualquer pretensão de ser especialista, mesmo que modesto, na matéria. Tudo o que não seja aplicação em certificados de aforro ou de títulos do Tesouro já é para mim demasiado complexo. Mas, desde a crise de 2007-2008, não fiquei nada convencido sobre as promessas de reguladores, políticos e instituições internacionais de que todas as avarias tenham sido consertadas e todas as contradições sanadas. Neste universo de perturbações, o chamado risco moral, moral hazard, é muito forte. A invocação de que é necessário evitar a todo o custo a crise sistémica tem servido quase sempre para beneficiar o infrator, mesmo que assegurando a proteção de alguns depositantes. O risco moral é uma matéria tramada, pois a necessidade, compreensível, de proteger o maior número possível de depositantes e evitar o pânico generalizado, acaba sempre por abrir a brecha para mais uma situação em que o infrator age no pressuposto de que as coisas acabarão por ser regularizadas.

Os acontecimentos mais recentes com epicentro em Silicon Valley, na Califórnia, estendidas depois ao Crédit Suisse e agora de novo nos EUA com o First Republic Bank a abanar por todos os lados justificam essa preocupação, embora a queda de bancos nos EUA seja cultura fácil (ver imagem inicial). Esta fonte de instabilidade apresenta singularidades relativamente à que teve o epicentro no subprime americano. Primeiro, no Silicon Valley Bank, existia uma relação latente com o mundo do capital de risco e dos start-up’s, grupo em que encontramos os mais avessos à regulação, como se fossem o último bastião do capitalismo não regulado. Segundo, até agora e pelo menos nos EUA, são bancos de média dimensão que abanam. Os problemas do First Republic Bank parecem confirmar o padrão. Terceiro, e em meu modesto entender, o aspeto crucial da questão, os problemas de agora estão indissociavelmente ligados ao choque de transição que o surto inflacionário representou depois de uma profunda acalmia de evolução dos preços e à visão de mainstream que a inflação se combate com política monetária restritiva e arrefecimento global da economia, mesmo que nem todos os economistas estejam seguros de que a origem da inflação esteja num problema de excesso de procura global.

Em post anterior, já desenvolvi a ideia de que a política monetária restritiva de subida das taxas de juro de referência, mesmo que admitamos a existência de um consenso, que não existe, sobre a sua pertinência, enfrenta dois grandes problemas. Primeiro, porque indiretamente a subida das taxas de juro tende a provocar problemas no equilíbrio dos balanços das instituições bancárias. O valor dos seus ativos tende a descer com a subida das taxas de juro e para conter os danos os bancos vendem obviamente os seus ativos mais líquidos, tendendo por isso a reduzir a liquidez dos seus ativos, aumentando assim a sua vulnerabilidade face a possíveis retiradas de depósitos, consumadas por depositantes que se assustam com o anúncio dessas vulnerabilidades. Segundo, porque esse aumento de taxas de juro gera um importante efeito perverso. Os bancos para proteger a sua rendibilidade tendem a não repercutir esses aumentos nas taxas que remuneram os depósitos. Noah Smith descobriu inclusivamente um paper recente, publicado no confiável Quarterly Journal of Economics (1), que demonstra que esses ganhos associados à “batota” de não ajustar as remunerações dos depósitos são praticamente do mesmo valor que as perdas de valor dos ativos associada à subida das taxas de juro. Ora, se os depositantes não forem uns anjinhos (até eu compreendo que é melhor ter o dinheiro em certificados de aforro) e se não estiverem no grau zero da literacia financeira, pode perguntar-se quem serão os idiotas a manter depósitos bancários. O que nos conduz a algo de paradoxal. A necessidade de os bancos penalizarem depositantes para se safarem da perda de valor dos seus ativos constitui um forte incentivo a novas retiradas de depósitos. Deixem ver se percebi bem. A intervenção de reguladores e governo é concretizada no sentido de evitar o pânico sistémico. Mas a sua política restritiva acaba por convidar os depositantes a procurarem outros pontos de parqueamento das suas poupanças.

Conforme estão a tomar consciência do imbróglio, percebe-se que isto de sistema bancário e financeiro tem que se lhe diga e sem querer ser mauzinho talvez seja por estas razões que os “financeiros” (que a Grande Agustina distinguia bem dos economistas e ela sabia do que falava) que se julgam merecedores de remunerações e de reformas tão chorudas.

Misturam-se aqui duas questões.

A primeira resulta do facto deste paradoxo acabar por representar algo de agradável para a política monetária restritiva. Porque subir as taxas de juro de referência não significa necessária e espontaneamente arrefecer a economia. Mas obrigar os bancos a conceder menos crédito permite atingir esse objetivo. Ora, quando os bancos são obrigados a vender os ativos mais líquidos e ficam presos numa situação de menor liquidez são, por esse mecanismo, obrigados a conceder menos crédito. Se a retirada de depósitos se complica, as autoridades intervêm, o “show must go on”. Tal como acontecei com o Silicon Valley Bank todos os depósitos, incluindo os não protegidos foram cobertos.

A segunda questão conexa com este paradoxo é a de que alguns especialistas invocam galões para compreender a psicologia dos depositantes. A psicologia do pânico generalizado e sistémica está bastante estudada. Mesmo que haja depósitos cuja proteção está assegurada, os de maior volume em princípio não estarão, ao mínimo rumor a retirada é inevitável, o contágio psicológico instala-se e pode inclusivamente levar os depositantes mais sensíveis a retirar os depósitos protegidos. Ora, neste caso, os economistas fazem jus à sua imaginação e designam o que tem acontecido mais recentemente de “pânico lento”. O que acontece é uma cronologia que se assemelha a algo do tipo: os mais lúcidos e financeiramente informados começam por nem utilizar os depósitos bancários como parqueamento de recursos e se o fizerem antecipam o desvio remuneratório que penaliza os depósitos e vão retirando depósitos para outros parqueamentos, doseando risco e liquidez. Restam os distraídos ou anjinhos, regra geral com poupanças e recursos abaixo do limiar em que a lei protege os depósitos.

Sou normalmente cético e receoso quanto à operacionalidade de conceitos demasiado frescos, como o do pânico lento. Se o pânico sistémico está suficientemente estudado, o mesmo não poderá ser dito quanto a este tipo de pânico.

Por isso, aceitem o testemunho de um anjinho financeiro. Além dos certificados de aforro, tudo é demasiado complexo para meu gosto e capacidade.

( (1) Itamar Drechsler; Alexi Savov; Philipp Schnabl e Olivier Wang (2023). “Banking on Uninsured Deposits”. Quarterly Journal of Economics. https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=4411127

 

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