terça-feira, 2 de maio de 2023

A ECONOMIA PARECE DESPRENDER-SE DA POLÍTICA, MAS …

 


(Os Portugueses correm o risco de se verem mergulhados num estranho momento de dissonância cognitiva. Se, por um lado, à revelia do que seria expectável numa maioria absoluta, a governação vive numa permanente agitação, por outro, a economia segue o seu rumo, não propriamente exuberante, mas muito poucos países eleitos o podem reivindicar, confirmando o sugerido pela recuperação pós-pandémica. Face a esta evidência de dissonância, que já se manifestou mais do que uma vez, há quem defenda que, finalmente, a sociedade civil, leia-se a economia, encontrou o seu rumo próprio, desprendendo-se da dependência face à política interna. Tal como aconteceu nas outras situações já observadas, o argumento é sugestivo, mas creio que é demasiado simplista e exige algum pensamento crítico. Dedico o post de hoje a essa tentativa de ver em tons um pouco mais escuros, o que aparentemente é muito claro.

Tal como já noutras oportunidades o referi, acho que se exagera e bastante a possibilidade da política influenciar a economia e também desta servir de elemento de avaliação da qualidade e intensidade da atividade política. Isto deve-se ao facto de serem os próprios governantes a alimentar um comportamento ambivalente e dúbio quanto a esta matéria. Assim, quando a economia vai bem, a classe política exagera frequentemente o seu papel e contributo para essa situação. É conhecido que a situação macroeconómica global dos países tende a influenciar o pêndulo eleitoral, veja-se, por exemplo, o que se passa habitualmente nos EUA. Mas, quando aprofundamos o conhecimento dos mecanismos causais em que tal suposição se baseia, o que podemos encontrar é de muito débil alcance, sob raríssimas exceções de medidas que pela sua envergadura acabam por influenciar tal relação. Do mesmo modo, quando a classe governante sacode a água do capote em conjunturas macroeconómicas adversas e a oposição investe forte e feio em torno dessa matéria, também se poderá dizer que, em parte, os governantes acossados têm alguma razão em não oferecer voluntariamente o seu sacrifício. Salvo, claro está, algum erro irremediável de política, que também os há, e que deixa a sua marca negativa nessa governação.

O que pode explicar então que perante a desorientação governativa a economia pareça funcionar o melhor que pode nesse cenário?

Em primeiro lugar, deve aqui ser invocado o processo normal de aprendizagem que a classe empresarial vai construindo em função da sua experiência de sucessivas conjunturas de descalabro governativo. Se parte dessa classe empresarial, atrevo-me a dizer quase residual e sobretudo de base local, se deixa envolver pela luta política, regra geral com duplo prejuízo, penalizando as empresas e não acrescentando nada à política, a classe empresarial mais racional e robusta já aprendeu a viver com tais situações, segue com alguma distância essa luta política não se comprometendo.

Claro que esta capacidade de distanciação tem um fator facilitador, e esse é o segundo ponto do meu argumento. Para mal dos pecados de uma economia que deveria estar já em processo acelerado de desmame dos Fundos Europeus, uma grande parte do que a governação pode fazer pela economia está concentrada nos instrumentos de política pública com cofinanciamento europeu. Assim sendo, só uma governação de fracasso e incompetência totais poderia comprometer essa navegação. Os níveis de compromisso de utilização de Fundos Europeus tendem a ser sempre muito elevados, permanecendo depois o problema das condições de facilitação da execução como o único elo de ligação com a qualidade da governação. Dada a forte engenharia de execução de Fundos que por cá impera, embora os custos de contexto da implementação estejam a aumentar, os problemas vão sendo resolvidos e, pese embora os despautérios governativos, a classe empresarial lá vai fazendo o seu rumo, não criando ondas despropositadas. Embora permanentemente crítica do fraco peso dos Fundos que chegam às empresas, grande parte da classe empresarial já percebeu que os efeitos indiretos dos Fundos alocados à atividade púbica acabam por via das externalidades positivas e do efeito indutor do investimento público por chegar às empresas.

Claro que toda esta argumentação, e este será o meu terceiro ponto, se aplica a um contexto de crescimento que muitos consideram anémico para as necessidades do país, em torno digamos dos 2%. Direi a este propósito que, para este intervalo de taxas de crescimento, os processos de aprendizagem (aprendendo navegando em tempos de governação instável) e os compromissos em torno dos Fundos Europeus chegam para explicar o aparente desprendimento da economia face à política.

Em meu entender, a relação entre política e economia torna-se mais exigente quando se ambiciona a entrada em processos mais disruptivos de conhecimento. Nesse contexto, aprendizagem e Fundos Europeus não são mais bastantes. O que dizer então sobre essa matéria?

Em primeiro lugar, a grande generalidade dos argumentos conhecidos na praça pública quanto à exigência de ritmos de crescimento mais disruptivos do clima morno, ou anémico segundo alguns, dos últimos tempos são bastante débeis na argumentação subjacente. Já para não falar do exemplo sempre invocado da Irlanda, cuja contextualização e irreplicabilidade são sempre ignoradas, que poderia ser estendido às economias bálticas, cuja libertação do jugo soviético as projeta também numa banda dificilmente replicável, os argumentos aparecidos não me parecem ser muito convincentes. Tenho razões para explicar esse meu não convencimento e gostaria de dedicar a parte final do post a essa matéria.

A economia portuguesa está na minha leitura num processo de transição que caracterizaria nos seguintes termos. O nosso nível de desenvolvimento económico e tecnológico não permite já considerar que, através de um esforço de investimento de grande envergadura, equipamento importado e difusor de inovação tecnológica, o país possa atravessar um grande impulso de crescimento como nos tempos em que a formação bruta de capital se situava acima dos 20% do PIB. Aliás, poderia perguntar-se como poderíamos financiar esse esforço de investimento, além do que já está a ser assegurado por Fundos Europeus. Por outro lado, a estrutura de I&D empresarial não está ainda suficientemente generalizada na economia portuguesa para permitir esse impulso por via da incorporação de conhecimento e tecnologia nacional.

Neste contexto de uma transição muito particular, o papel da política deverá ser o de investir na criação de condições facilitadoras desse salto mais disruptivo nos ritmos de crescimento. Aqui sim, haverá mais condições para exigir à política mais lucidez e ambição nesse propósito, nunca ignorando que o ambiente da economia global aponta para outras paragens como fontes desses crescimentos mais disruptivos. A Europa contribuirá apenas com 7,1% do crescimento global do mundo em 2023, como o assinala o FMI (1).

Mas esse é tema para incursões futuras.

(1) https://www.imf.org/en/Blogs/Articles/2023/05/01/asia-poised-to-drive-global-economic-growth-boosted-by-chinas-reopening?utm_medium=email&utm_source=govdelivery

 

Sem comentários:

Enviar um comentário