domingo, 9 de julho de 2023

JOSÉ MATTOSO

 


(Não posso de modo algum considerar-me um especialista ou sequer um leitor recorrente da obra de José Mattoso. Como explicar então que esteja perante alguém cujas ideias históricas estruturantes marcaram indelevelmente a minha compreensão do país que somos, principalmente do ponto de vista da sua organização espacial e administrativa e do nível profundo de centralismo que o caracteriza. Tudo isso se explica através de uma pequena obra, A Identidade Nacional, nº 1 dos Cadernos Democráticos publicados pela Fundação Mário Soares, que me levaram depois à leitura mais estruturada de Identificação de um País. Ensaio sobre as origens de Portugal, inicialmente publicado pela Editorial Estampa em 1985. A partir dessas leituras, todo o meu pensamento sobre a organização espacial do país se transformou e por isso registo aqui o desaparecimento aos 90 anos de um dos mais estimulantes e simultaneamente atípicos intelectuais portugueses.)

A Identidade Nacional é um livrinho surpreendente. Lembro-me de o ter lido de uma assentada e depois de o rever em sucessivas e múltiplas leituras dada a profundidade dos seus argumentos históricos e socioeconómicos fiquei para sempre com a convicção de que um clique se tinha produzido mudando para sempre a minha compreensão histórica e espacial do país que somos. Algo se similar aconteceu com a leitura do Labirinto da Saudade de Eduardo Lourenço, também lido inicialmente de uma assentada e depois revisto para meditar e aprofundar a argumentação.

Mas que ideia essencial provocou o tal clique e me conduziu depois a ler com mais atenção e rigor a Identificação de um País?

O argumento central de Mattoso, conduzido ao longo de uma fundamentação histórica contagiante, é a de que em Portugal o Estado precedeu a Nação. Sim, orgulhamo-nos na Europa de que Portugal é um país de longa existência, com fronteiras definidas há longo tempo, mas Mattoso esclarece-nos que a profunda diversidade que emerge da nossa pequena dimensão só foi possível transformar-se em Nação com a precedência do Estado como elemento aglutinador dessa diversidade.

Citando uma das partes da obra que mais ficou gravada na minha memória e reflexão:

O que vimos até aqui sobre a fragmentação étnica, sobre a pulverização dos poderes locais, fossem de origem senhorial ou concelhia, sobre a debilidade da cultura popular perante a cultura letrada, mostra, em todos os níveis e em todos os sectores, uma influência reduzida dos poderes constituídos sobre a formação das identidades regionais, mas enorme sobre a formação de uma identidade comum, em qualquer ponto do espaço nacional. Ou, mais precisamente ainda, o enorme peso do poder político representado pelo Estado e apoiado pelas forças económicas, sociais e culturais dominantes sobre todas as manifestações da identidade nacional. O que cria e sustenta a identidade portuguesa é de facto o Estado. Por isso, o processo de eclosão da consciência nacional é tão lento e a sua expressão popular tão tardia. Não desce a todos os níveis senão depois de o Estado se formar, se centralizar, se fortalecer e acabar por obter o monopólio completo do poder público, nos séculos XIX e XX.

Outro fenómeno que confirma a influência determinante do fenómeno político sobre a formação da consciência regional é o facto de esta aparecer independentemente de qualquer sentimento de pertença territorial de outro nível (nomeadamente de nível regional). Com efeito, não existe qualquer relação de continuidade entre a consciência de pertença a uma determinada região ou família étnica e a condição de sr português (ao contrário do que acontece com as nações modernas derivadas, por exemplo, de povos germânicos ou eslavos, onde se verifica uma continuidade entre as formações étnicas e a sua expressão política moderna). Ser português começou por ser o mesmo que vassalo do rei de Portugal e não por se pertencer a um determinado povo.”

Clareza, rigor, fundamentação complementarmente obtida na Identificação de um País e nunca mais a minha visão sobre o centralismo português foi a mesma. Temos o Estado central como o elemento determinante da identidade nacional, precedendo a Nação, da qual tanto nos orgulhamos.

Desta interpretação de José Mattoso adquiri a minha profunda convicção das raízes históricas profundas do centralismo português. Esquecer esta ideia estruturante do historiador português agora desaparecido na desconstrução desse mesmo centralismo equivalerá seguramente a asneira. Por isso, tenho-me esforçado nas minhas tentativas pessoais de contribuir para um país menos centralizado por ensaiá-lo sem esquecer a raiz profunda das suas origens.

 

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