(Expresso Economia)
(Tal como noutros posts o tenho referido, a tribo dos economistas ou melhor a multiplicidade de tribos em que a comunidade se organiza aproveita todas as oportunidades para fazer jus a esse ADN. A longa hibernação em que a inflação esteve mergulhada em termos do zero lower bound, taxas de juro nulas ou negativas, arrefeceu artificialmente essa multiplicidade e o debate em torno das suas origens, determinantes e meios de a combater. Não sabemos se esse longo interregno poderá regressar. O que sabemos é que por agora o regresso da inflação pulverizou ainda mais a tribo, parecendo assim regressar à matriz identitária da conflitualidade de posições. Cada corrente amanha-se como pode, mas a tribo parece regressada aos bons velhos tempos da diversidade.)
Tal como noutros temas económicos, os americanos precedem, traçam os caminhos e, como regra geral acontece, os europeus vão seguindo o assunto com um significativo desfasamento temporal, permanecendo na eterna contradição de acompanhar a argumentação do outro lado do Atlântico ou, pelo contrário, construir explicações plausíveis para a sua própria evidência.
Assim, temos que pela generalidade dos critérios disponíveis, e as estatísticas americanas têm-se esmerado na construção de novos índices e indicadores, a inflação americana tende para a normalização.
O economista Jason Furman, afeto à administração Biden, oferece-nos uma tabela bastante ilustrativa dessa tendência:
Tabela – Inflação medida pelo Índice de Preços ao Consumo para junho de 2023, taxa anual (%)
Critérios |
1 mês |
3 meses |
6 meses |
12 meses |
Inflação geral |
2,2 |
2,7 |
3,3 |
3,1 |
Inflação central |
1,9 |
4,1 |
4,6 |
4,9 |
Idem com novos índices para a habitação privada |
- 0,6 |
1,9 |
2,5 |
2,4 |
Idem sem habitação e carros usados |
0,3 |
1,1 |
2,7 |
3,6 |
Serviços sem habitação |
1,1 |
2,1 |
3,0 |
3,9 |
Nos EUA, os economistas começaram por dividir-se entre o grupo que viu o surto inflacionista como algo de transitório e o que a interpretou como algo de mais estrutural que exigia intervenção consequente sob o risco de gerar um entrincheiramento de expectativas cumulativas. Recordo que o principal fator que conduziu ao aparecimento do grupo da inflação transitória foi a transição pandémica, com os conhecidos processos de revitalização da procura num contexto em que a pandemia tinha interrompido ou diminuído os ritmos de produção. Assim sendo, este grupo não tinha como antecipar os desvarios de cabeça de Putin e os efeitos associados à invasão da Ucrânia. De certo modo, compreendo o argumento de que no fundo há dois choques, o primeiro previsível (transição pós pandémica), com o segundo totalmente imprevisível (regra geral os serviços secretos não comunicam diretamente com os macroeconomistas). É, assim, difícil afirmar que os adeptos da inflação transitória perderam a contenda. Porém, seguramente enganaram-se na magnitude do tempo da transitoriedade. A seu favor conta o facto do segundo choque ser totalmente não antecipável, explicando em parte o aumento de duração do transitório.
Uma outra subtribo apareceu entretanto no horizonte do debate, sobretudo a partir do momento em que a dimensão temporal do transitório começou a alongar-se. Ficou conhecida pela inflação determinada pela ganância dos lucros. A paulatina e progressiva concentração da estrutura empresarial americana tornaria a economia americana com menor capacidade de reação face a choques de procura e de oferta, fazendo com que a inflação emergisse mais elevada do que aconteceria se não existisse essa concentração crescente. A correlação observada entre as margens de lucro e a variação de preços constitui a evidência central a que esta subtribo se agarra. Mas, infelizmente, o problema da causalidade continua a ser um problema muito mal resolvido na macroeconomia. Todos sabemos, pelo menos os mais rigorosos, que existir uma correlação não significa necessariamente a existência de uma causalidade, mas a situação mais frequente é encolher os ombros e nada fazer para melhor o domínio da causalidade em economia. Sem um domínio completo da causalidade, a “inflação da ganância” fica refém da evidência empírica e nem sempre ela favorece a ideia de que o aumento dos lucros favorece a inflação.
Nos dados publicados pelo Expresso Economia de hoje, a particularidade dos aumentos do salário mínimo faz com que em Portugal, desde 2019, os custos do trabalho tenham crescido mais do que os lucros e lá se vai pela evidência abaixo a tese da ganância.
Onde me parece que a pulverização de posições é mais intensa não é tanto nas diferentes explicações da inflação mas antes na avaliação da eficácia da política monetária. As evidências encontradas tudo têm feito para baralhar as posições. Assim, por exemplo, ao contrário do que muitos economistas instalados a restrição da política monetária não provocou as subidas de desemprego que se temia que deveriam acontecer. Assim, ao contrário do que alguns consideram sacrilégio duvidar da eficácia da política monetária, nunca como hoje tenho deparado com tantas posições do tipo “a política monetária pode pouco fazer para controlar a inflação dada a sua irrelevância face ao que acontece no mercado de trabalho” ou “faz alguma coisa mas com anos de atraso, por isso a probabilidade de gerar uma recessão desnecessária é gigantesca”.
Concluindo, a tribo da macroeconomia continua incorrigível e a pergunta a que sou sempre conduzido é esta: será que a formação superior e avançada em macroeconomia refle este estado de coisas ou camufla a conflitualidade?
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