segunda-feira, 10 de julho de 2023

CHRISTINE POR LOUÇÃ E REIS

Como é público e notório, a continuada subida das taxas de juro pelo BCE tem estado sob a mira dos nossos políticos. Por razões mais decorrentes da necessidade de afirmação de uma posição que assumem como simpática para a maioria dos portugueses atingidos do que visando trazerem ao de cima fundamentos técnicos minimamente sólidos. Disso aqui não falarei, já que a demagogia e a ignorância devem ser preferencialmente ignoradas, ademais quando alguns daqueles protagonistas não têm registado a devida coerência nas respetivas tomadas de posição sobre a matéria ao longo do tempo. Note-se, de passagem, que o subtítulo da imagem do “Expresso” que abre este post (“BCE no centro dos ataques dos políticos”) padece de falta de rigor ao colocar a tónica num desafio que não existiu de Lagarde ao Governo e nas críticas que hoje ridiculamente prometem endereçar-lhe alguns eurodeputados do PS.

 

Quero, isso sim, reportar-me a coisas sérias, vindas de quem sabe o que diz e diz o que pensa de modo estruturado. Tal opção poderia aplicar-se aos muitos especialistas que se têm pronunciado com conhecimento de causa, seja em termos mais críticos ou mais favoráveis, à atuação do BCE (sobretudo entre os que atiram a desconsiderações a merecerem outro espaço analítico, como as dos riscos de recessão da zona do Euro, da incerteza sobre a persistência da inflação, do compromisso com o forward guidance, da defesa de dinâmicas salariais mais obsessivamente tendentes a uma recuperação do respetivo poder de compra ou à alimentação de uma espiral preços-salários, do verdadeiro papel da chamada inflação subjacente na real medida do fenómeno ou do enorme desequilíbrio estrutural que tão fortemente marca a Europa nesta matéria).


(Emilio Giannelli, http://www.corriere.it)

 

Limito-me, no entanto, a conceder aqui centralidade ao caso do confronto produzido entre Francisco Louçã e Ricardo Reis no programa “É ou Não É ― O Grande Debate” da RTP e Carlos Daniel, ocorrido com o mais secundário testemunho de João Leão e Sandra Maximiano. Confronto de que surgiram alguns interessantes ecos complementares na terceira página do caderno de Economia do “Expresso” desta semana. Reproduzo de seguida alguns dos principais argumentos apresentados naquele debate, que julgo ter constituído um verdadeiro momento de serviço público da televisão portuguesa.


Francisco Louçã (FL) abriu as “hostilidades”, assim: “Percebe-se bem que o efeito das taxas de juro é pesado sobre a distribuição dos rendimentos e sobre as perspetivas das famílias ― há um milhão e quatrocentos mil contratos de arrendamento, a maior parte dos quais (93%) com taxa variável (...); isso tem um peso enorme na vida das pessoas e a perceção de que esse choque é tão forte tem levado a esta espécie de consenso sobre a crítica às intervenções de Lagarde. Há, no entanto, algumas perplexidades: primeiro, todos estes responsáveis políticos, que foram determinantes na constituição dos Estatutos do BCE, aceitaram a sua independência, precisamente para garantir esta impossibilidade de pressão política (...); segundo, toda a gente disse que a inflação era temporária e seria absorvida sabe-se lá como; terceiro, o próprio primeiro-ministro que hoje critica Lagarde sobre a questão do aumento dos salários, e nesse caso creio que bem, dizia há três meses que se os salários aumentassem teríamos uma espiral inflacionária. Ou seja, acumulou-se incerteza, mudança de opinião, como se não houvesse nem diagnóstico nem capacidade de atuação. (...) Que neste contexto o BCE faça o que quer, é o que lhe disseram para fazer.” Para logo ir ao assunto: “A inflação não é provocada por espiral salarial, porque a inflação não é provocada de uma forma generalizada por aumento dos custos de produção, portanto não há nenhuma pressão do ponto de vista da procura. O que há é uma mudança de regime que permitiu a empresas com muito poder aumentarem as suas margens e, portanto, imporem a sua força. E isso Lagarde, aliás, reconhece. (...) Toda a inflação se resume a um problema que é o aumento excessivo dos lucros das empresas, das vantagens de algumas empresas dominantes em setores da economia. Portanto, para combater a inflação não é pelos juros mas é pelos lucros excessivos.”

 

Ricardo Reis (RR) não se fez rogado em ripostar frontalmente: “O BCE está a agir muito bem, de forma adequada e a política monetária dos últimos doze meses tem sido a necessária para controlar a inflação. É verdade que, quando recuamos ao final de 2021 e a 2022, houve um inicial diagnóstico por parte do BCE de que este seria um problema temporários, transitório, e como tal não era preciso subir as taxas de juro. Hoje sabemos que isso foi um erro. Hoje sabemos que devíamos ter começado a subir as taxas de juro mais cedo e mais do que fizemos até agora. Portanto, ao contrário do que disse o Professor Louçã, esse erro de diagnóstico o que implica é que devíamos ter subido ainda mais as taxas de juro ― começamos a fazê-lo tarde demais e por isso é que agora estamos a ter de subi-las mais do que seria necessário.” Acrescentando ainda: “Vão ter de haver mais uma ou duas subidas, possivelmente três ou quatro. A taxa de juro vai ter de subir até aos 4% ou um pouco mais porque é isso que é necessário para controlar a inflação. Porque no final de tudo a inflação é um fenómeno monetário, é um fenómeno que resulta da taxa de juro fixada pelo Banco Central em relação a outros fatores e outros choques económicos e a única ferramenta que temos para controlar a inflação, e temos nisso décadas e décadas de experiência, é subir ou descer taxas de juro. (...) O que tornou a inflação mais persistente do que devia ser foi precisamente não termos subido a taxa de juro mais cedo. Não vamos fazer o mesmo erro duas vezes. (...)” E finalizando a definição do seu posicionamento: “Em relação aos lucros e aos salários, cuidado aqui com o que penso ser alguma confusão. Numa fase inicial de um processo inflacionista, os preços sobem mais do que os salários, as pessoas perdem poder de compra e temos o sofrimento que vemos ligado à inflação nos últimos doze meses; numa segunda fase, os salários ajustam-se, sobem mais do que os preços e ainda bem que assim é. E Christine Lagarde não disse nada de contrário acerca disso. (...) Agora, se os salários devem subir mais do que os preços podemos entrar numa situação em que os salários sobem ainda mais do que isso e levem a que os preços tenham de subir ainda mais para compensar e são as tais espirais. Não há sinal de que haja uma espiral neste momento, não há sinal de que ela vá ocorrer e Christine Lagarde apenas notou brevemente que, se a produtividade baixar muito, talvez os salários não possam subir tanto. Mas não há problema nenhum em os salários subirem, os salários não causam inflação, os salários fazem parte da evolução da inflação, as subidas e descidas fazem parte do ajustamento inflacionista.”

 

A conversa deu, então, algumas voltas até voltar a RR. Que sublinhou, primeiramente: “Com certeza que em Portugal é importante subir os salários, não só pelo processo de ajustamento mas até porque eles têm de recuperar em relação à perda de poder de compra que tiveram no passado. No entanto, e para além disso, os salários acompanham o que é a produtividade e, portanto, para os salários poderem subir não é uma questão de decreto mas sim de termos de aumentar a produtividade da nossa economia. Esperemos que, de facto, (...) estejamos a fazer uma transição para uma economia mais produtiva e que estruturalmente consegue criar mais riqueza e, assim, subir os salários de forma permanente.” E depois: “Em relação às margens de lucros, de notar que nos últimos 20 anos o peso dos lucros no rendimento é aproximadamente constante. Não é verdade que os salários tenham descido e os lucros subido. (...) Dependem ambos do tamanho do bolo e o tamanho é o PIB, o tamanho do bolo é determinado pela produtividade e é isso que é importante para poder subir os salários.” Para assim concluir esta parte da sua intervenção: “Espera-se que em 2023 e 2024 seja normal que os salários subam mais do que os preços e recuperem de forma a que cheguemos, daqui a 12-18 meses, ao nível “normal” ou médio do que é a relação entre preços e salários. É esta a razão pela qual a inflação é tão custosa, é porque ela atinge os trabalhadores, tem este lado regressivo. (...) E é por isso que é tão importante, hoje, subir os juros para controlar a inflação para que, de facto, os salários possam subir e possam recuperar esse estado. Depois desse processo de ajustamento, eu estava a olhar mais para o longo prazo, aí estamos a falar de produtividade. (...) Isto não quer dizer que as empresas abusaram da sua posição dominante, como disse o Professor Francisco Louçã há pouco, simplesmente os preços sobem e os salários não sobem tanto... Ou seja, não há nada de causal, não são as margens de lucro que provocam a inflação. Não. É a inflação que leva no seu processo a que inicialmente as margens subam e depois caiam.

 

Os racionais da coisa estavam claros e lançados, mas FL entendeu passar mais ativamente ao ataque. Assim: “Não levará a mal o Professor Ricardo Reis por lhe dizer que eu acho que ele é como a Alice que caiu na toca do coelho no País das Maravilhas. Porque não foram os lucros que provocaram a inflação e vamos ter um grande aumento de salários no próximo ano. Ambas problemáticas se não implausíveis. Primeiro ponto: a inflação não vem de Marte ― houve um choque energético muito forte que se repercute sobre o conjunto da economia e que foi totalmente reabsorvido, há efeitos diferenciais em alguns mercados que têm peso sobre a alimentação, mas não há nenhum efeito mecânico, como foi dito, que explique que a inflação alimentar em Portugal seja sustentadamente o dobro do que é em Espanha ― Espanha tem um padrão de importações alimentares que não é substancialmente diferente do nosso, sendo um sistema produtivo mais poderoso mas que está numa situação de dependência do tipo da nossa; portanto, só há uma explicação pelo poder de empresas de distribuição, que usaram esse poder; o que não podiam fazer até agora, porque quando a inflação era muito baixa toda a estrutura da economia se adaptou, durante os 20 anos do Euro e com taxas de juro baixas, a uma inflação muito baixa; ou seja, por razões concorrenciais as empresas não podiam fazer este jogo. No momento em que se abriu a porta para um novo regime, puderam fazê-lo e é espantoso que o possam fazer em Portugal com muito mais intensidade do que noutros países. Eu acho que é um insulto para os portugueses que nos digam que é um efeito mecânico que a evolução dos preços dos produtos alimentares em geral possa ser o dobro do que é em Espanha. (...) Portanto, nós temos um problema de diagnóstico ― se a inflação não vem de Marte, se não vem de um efeito duradouro da energia, é porque vem de uma estrutura da distribuição e da organização dos preços. E, portanto, antecipar o risco dos salários, como fez Lagarde, para prevenir que eles não possam subir (o Professor Ricardo Reis de uma forma mais elegante fê-lo agora dizendo que irão subir mas não devem subir se a produtividade não acompanhar).”

 

Mas FL estava determinado a impor o seu argumentário, prosseguindo deste modo: “O aumento das taxas de juro procura responder a um problema que não existe: um excesso de procura. O João Leão acabou de o dizer, com inteira exatidão, que o que nós temos é uma redução da procura. O aumento das taxas de juro procura um efeito que é criar recessão, não evitar recessão, abater a procura e o consumo e abater a procura por via de tornar mais caro o investimento. Portanto, é uma terapia sobre uma dificuldade que surge na economia dirigida à perceção de que são as pessoas a correr às compras ou os empresários a correr ao investimento que estão a aumentar a procura geral nessas duas componentes essenciais.” Acrescentando: “O BCE propõe-nos o seguinte: provoquemos uma recessão. Provavelmente não querem uma recessão muito profunda, isso tem dificuldades na gestão económica. Mas o banco tem independência para o fazer, foi protegido, foi blindado desse ponto de vista, os governos podem protestar o que quiserem que isso não tem nenhum efeito. (...) É uma entidade totalmente política, é a mais política da União Europeia porque é a que tem mais poder político sobre a vida das pessoas, como se está a ver neste contexto, nesta gestão da economia por via da política monetária. (...) Que o BCE se pronuncie sobre os salários não deixa de ser curioso, não é verdade? O seu estatuto é sobre a inflação. Pode discutir a questão dos salários mas está a prescrever o que deve acontecer sobre os salários, o que é um debate democrático dentro da sociedade.” E afirmando com convicção: “Esta é a pior receita de todas. Não é uma questão de um provisório sofrimento. É que ela prolonga a crise, acentuando a crise, agindo sobre fatores essenciais que não são os que provocam a crise. Portanto, não há nenhuma outra forma de intervir sobre esta política senão com políticas de correção do ponto de vista dos rendimentos, que possam proteger os setores mais atingidos por esta crise, nomeadamente nos salários e no efeito sobre a compra da habitação, e evitar nos setores da economia onde é possível influenciar a formação dos preços.” Para concluir deste modo: “Dizer que o aumento dos salários vai ocorrer é uma promessa duvidosa. Tem havido uma luta em Portugal nos últimos anos que os salários sempre têm perdido. Usar o argumento do peso dos salários e dos lucros no rendimento nacional é muito discutível porque a forma como esses grandes agregados são medidos é totalmente falível. Em termos concretos, o que nós sabemos é o seguinte: em 20 anos, quem tinha um salário de mil euros em 2002 precisaria agora de 1422 euros para ter o mesmo valor de salário. Este aumento de salário não ocorreu. Os salários reduziram-se em termos reais. E quando vemos quem tem 1000 euros em Portugal, entre os jovens há dois terços que não têm. E há o problema da especialização da economia portuguesa, porque um pouco mais de um terço dos trabalhadores em Portugal trabalha no turismo, no alojamento, no comércio, na distribuição, na restauração; assim, as medidas de produtividade são todas muito discutíveis, muito falíveis, muito aproximativas. A batalha pela produtividade pode-se medir bem numa empresa que produz bens materiais ou numa empresa de serviços de alguma forma. Numa economia que se especializou, por vontade estratégica, em salários baixos como no setor do turismo e apostando no setor do turismo não sai de salários baixos, o peso da inflação na distribuição dos rendimentos agrava a desigualdade que estamos a viver. Que o BCE nos venha dizer, neste contexto, que o aumento dos juros é a medida adequada ou que governantes nos possam dizer que não podem mexer na estrutura dos preços ou influenciá-la ou verificar a formação de preços exagerados ou, até pior do que isso, haver quem reconheça que há formação de preços exagerados, lucros e margens excessivas e considere isso um processo natural dentro deste contexto é preocupante porque é uma economia cruel, é uma economia virada contra a vida das pessoas. Olhar para os salários e para a distribuição dos rendimentos é chave neste contexto porque é um problema democrático.”

 

Mais adiante, RR ainda tentou regressar a um ponto essencial de clivagem: “Deixe-me primeiro discordar e depois concordar com o Professor Louçã. Discordar numa coisa que ele já disse duas vezes e da qual eu discordo (...). Ele diz que nós estamos a subir as taxas de juro para criar uma recessão e daí causar a inflação; não é assim que eu compreendo a política monetária e como ela funciona ― nós estamos a subir as taxas de juro pela baixa inflação, há um efeito colateral que às vezes acontece pela subida das taxas de juro que é causar uma recessão. Eu tomo um antibiótico para matar a bactéria que está no meu corpo, ele às vezes também me causa alguns problemas intestinais. (...) E tanto é que, como disse o Professor Leão, nós subimos a taxa de juro mais do que alguma vez (4%) e não causamos recessão nenhuma até agora, a economia portuguesa não está em recessão.”

 

Em síntese, terá ficado bem visível a gigantesca diferença de perspetivas entre os dois economistas, um tido por mais convencional e o outro por mais heterodoxo, mas ambos bastante firmes e sustentados nas suas crenças. Ao leitor de escolher o campo, contanto que tal não corresponda a uma unilateralidade dogmática e estritamente determinada pelas crescentemente perversas e volúveis dinâmicas da política pura e dura.

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