(Em posts anteriores, chamei a atenção para a situação incómoda em que os diretórios mais ortodoxos e liberais instalados nas instituições comunitárias se encontram face à decidida intervenção económica da administração Biden na economia americana. Embora não limitada ao Inflation Reduction Act, orientado para a economia verde e ao Chips and Science Act, orientado para a revitalização da indústria americana dos semicondutores, a intervenção da Administração Biden constitui algo bem mais profundo do que uma simples intervenção keynesiana apropriada para combater recessões, tal como Brad Delong sabiamente o compreendeu. Estamos pelo contrário a falar de um efetivo retorno da ideia de política industrial, que Brad Delong e Cohen batizaram de Concrete Economics, comentado neste blogue em 29 de março de 2016, como o tempo passa. Quem anda nestas coisas já há longo tempo apercebe-se mais facilmente dos passos em falso em que alguns doutrinadores são apanhados, quando a evolução dos factos e das ideias é acelerada por outros. Ora, neste caso, o amigo Americano mexeu-se e, como o sabemos desde a entrada dos EUA na Segunda Guerra Mundial, quando os americanos se organizam logisticamente para um dado objetivo são uma verdadeira força da natureza. Em tempo recorde, os americanos organizaram-se e entraram de cabeça no segundo conflito mundial e viraram os acontecimentos como Churchill sempre o desejou, após o passo em falso dos Japoneses em Pearl Harbour. É neste contexto que começam a surgir as primeiras vozes, secundando os primeiros escritos de Mariana Mazzucatto para o desígnio da economia verde na União Europeia. É tempo das ortodoxias europeias que silenciaram o conceito de política industrial enfiarem a violinha no saco, apagarem-se estrategicamente de cena. Mas se é de saudar o regresso do conceito de política industrial à política europeia, convém nunca esquecer que esse regresso será concretizado numa União com desenvolvimento desigual no seu interior. O que significa que a política industrial regressada não pode ser desenhada apenas em função dos países que comandam a fronteira tecnológica na Europa, como a Suécia, Alemanha ou França. Será fundamental reservar nesse processo um lugar para economias como a portuguesa.)
Sebastien Dullien escreve no sempre progressista Social Europe que a política industrial está de regresso, mas que desta vez a Europa tem de liderar. Não tenho a certeza se este pronunciamento é oportunista ou de circunstância ou se estamos perante alguém que só acordou agora depois o amigo Americano se ter mexido e colocar em risco a anomia europeia em termos de política industrial depois de ter procurado tudo para silenciar o conceito. Além disso, andou muita gente distraída, perdida de entusiasmo pela evolução das cadeias de valor globais (globalisation oblige) e só com a pandemia percebeu que a vulnerabilidade europeia tinha atingido níveis incomportáveis, e não apenas a distração alemã com a dependência energética face à Rússia. Dullien tem razão quando sublinha que a tese de que a maximização do bem-estar material mundial se concretiza apenas com o simples princípio de que a produção deve ser realizada algures no mundo em que a relação custo-produtividade é mais favorável tem que se lhe diga e deve ser olhada com precaução. O problema é que se a Europa não se mexer ela própria, e isso não significa necessariamente entrar de novo num modelo em que as cadeias de valor globais desapareçam, fica emparedada entre dois colossos, EUA e China, que estão a borrifar-se para as ortodoxias e quando atuam, atuam mesmo e não para agradar aos manuais universitários.
Dullien tem ainda razão quando sublinha que uma abordagem europeia de política industrial é necessária, para contrariar a tendência da atomização nacionalista na Europa e já há muitos candidatos a essa perspetiva, sorrateiramente instalados nas principais instituições. Mas atrever-me-ia a recordar um ponto, frequentemente ignorado. Uma política industrial europeia não pode esquecer que ela irá concretizar-se num modelo de desenvolvimento desigual ainda instalado. Ou seja, a ambição das suas perspetivas deverá permitir às economias de mais baixo nível de desenvolvimento económico mas com potencial de inovação já demonstrado ter um papel ativo nesse processo. A ideia de que todos as economias europeias estarão em condições de reagir competitiva e abertamente às oportunidades criadas pela política transversal europeia rapidamente se transformará na agudização desse mesmo processo de desenvolvimento desigual.
O modelo deve ser antes o de uma política industrial europeia, disso não há dúvidas, mas uma política industrial partilhada e negociada, valorizando os ativos e potenciais de cada um, independentemente do seu nível de desenvolvimento económico e aproveitando o processo para uma convergência mais rápida e intensa.
Creio que o ministro da Economia António Costa Silva entende isto perfeitamente e isso, nos tempos que correm e com a qualidade de governação que temos, já é um grande progresso.
Quanto às ortodoxias infiltradas e por agora com reduzidas condições para fazer ouvir os seus clamores elas não irão desaparecer como que por encanto. Devem ser por isso vigiadas com atenção, porque a sua capacidade para aproveitar qualquer processo ou material em proveito das suas convicções é imensa e permanentemente demonstrada.
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